Subindo a muralha

Subi-la é uma canseira mas em chegando ao topo está-se na Praça da Batalha. A antiga Calçada de Santa Teresa, agora Rua da Madeira, acompanha a antiga muralha da cidade.

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Vista do largo da Estação de S. Bento, a Rua da Madeira cria um estranho efeito de óptica. Parece pequena, parece estreita, parece que não vai ter saída e que, se a começarmos a percorrer, mais cedo ou mais tarde teremos de voltar para trás. Não é verdade, como qualquer incauto descobrirá se se meter por ela fora num dia de particular calor.

Porque a rua, que parece um beco com uns cafés e restaurantes alinhados, alarga-se de repente, ganha corpo numa curva ampla que sobe, decidida, até se encontrar com uma pequena escadaria que termina em mais uma subida. É uma canseira, a Rua da Madeira, bem mais traiçoeira que a sua vizinha e rectilínea 31 de Janeiro, que não engana ninguém e mostra logo ao que vai, sempre a subir até Santa Catarina. Pela Madeira, chegamos à Praça da Batalha sem saber que era ali que íamos dar e a pensar como é que nunca reparámos naquela rua encaixada entre um hotel e um café com a esplanada carregada de turistas.

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Apesar de estar no centro do Porto, a Rua da Madeira foi durante anos esquecida, encaixada entre os armazéns da lateral da estação de São Bento e as traseiras dos prédios da Rua 31 de Janeiro

A verdade é que devíamos ter sido mais prevenidos. Sabíamos que a rua seguia o percurso da antiga muralha da cidade e, se ali há uma ligação entre a zona baixa e a zona alta, era certo que só podíamos ter de subir e subir. Antes de mudar o nome para Rua da Madeira, na primeira década do século XX, a artéria era a Calçada da Teresa, nome cuja origem ainda permanece um mistério, embora se admita que pudesse existir alguma moradora com esse nome. Antes, também, a Calçada da Teresa não fazia fronteira com uma estação ferroviária, não era local de onde se podiam ver os comboios, mas sim a via que corria ao lado do Mosteiro de S. Bento de Avé-Maria, que existia antes de ser demolido para que a modernidade feita locomotiva chegasse ao centro da cidade. O primeiro comboio chegou à estação em 1896 e, por essa altura, já o Café Brasil, no início da rua, se tinha transformado num dos pontos de encontro do Porto. Aberto em 1859, lá continua, ao lado de outros locais bem conhecidos dos portuenses, como os restaurantes O Rápido (memória do nome que se dava ao comboio que ligava o Porto a Lisboa, saindo de São Bento) ou Viseu no Porto, que são exemplos de resistência.

Porque a Rua da Madeira foi, durante anos e anos, um dos locais esquecidos da cidade. Encaixada entre a lateral da estação, com os seus armazéns, e as traseiras dos prédios da Rua 31 de Janeiro, com alguns restaurantes e tascas, estrategicamente instalados antes de se começar a subir a sério, não era local que atraísse portuenses e turistas, apesar de estar mesmo no centro. A excepção era o domingo de manhã, quando a Feira dos Passarinhos animava a rua, enchendo-se de aves e tudo o mais que os vendedores levavam. Nunca foi legalizada, mas era tolerada, e há quem ainda lamente a sua partida, há mais de dez anos, para as imediações da Cadeia da Relação.

Depois disso, a rua parece ter-se fechado sobre si própria. De dia, quase não se dava por ela. À noite, era procurada por sem-abrigo e prostitutas. À Câmara do Porto, iam, amiúde, donos dos restaurantes locais pedir que, pelo menos, não se esquecessem de ir lá limpar a artéria, de vez em quando, já que o negócio se ressentia do abandono e do mau cheiro que a sujidade trazia.

Este ano, uma nova Locomotiva está a ver se dá a volta à rua. O programa de animação cultural tem levado diversas actividades à Rua da Madeira, e o que era antes um local de estacionamento, junto aos armazéns da Refer, na estação, é hoje uma área de acesso controlado, com sofás protegidos do sol.

E, lá ao cimo, junto às escadas, o edifício da antiga Fábrica de Máquinas Agostinho Ricon Peres parece agora estar disfarçado de zebra, depois de uma intervenção da dupla italiana de artistas de rua Sten & Lex. Os serviços da câmara parecem ter incluído definitivamente a Madeira no seu roteiro de limpeza e os turistas aventuram-se nos restaurantes típicos que acompanham a antiga subida da muralha.

Ainda é cedo para dizer que a Rua da Madeira tem uma nova vida. Que a mudança terá um impacto tão grande como quando uma outra locomotiva, de ferro e a fazer esvoaçar fumaça em todas as direcções, estacionou ali ao pé. Mas é bom que não seja preciso tapar o nariz quando se sobe, de S. Bento até à Batalha. Quando se pára, a meio da subida, para apreciar a vista da boca dos túneis de onde surgem dos comboios e as locomotivas estacionadas na estação. Ou quando nos voltamos, já nas escadas, para apreciar a vista da cidade, com a Torre dos Clérigos a parecer, dali, particularmente alta e destacada do cenário. Só por isso (e pelos filetes de polvo que comemos num dos restaurantes da rua) já valeu o esforço.     

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