Presente e futuro: para quem?

Quando um Estado não tem capacidade para pagar as suas dívidas aos credores internacionais privatiza partes do país.

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Quando um Estado não tem capacidade para pagar as suas dívidas aos credores internacionais privatiza partes do país.

No primeiro caso a empresa desaparece. A sua vida económica dilui-se. No segundo a família e os seus membros continuam a existir. A vida humana degrada-se. No terceiro os cidadãos persistem em viver e o Estado continua no mapa. A vida social desagrega-se na dignidade de existir, a vida humana avilta-se.

O economista regozija-se com o funcionamento das leis do mercado que ele próprio concebeu. O antropólogo lamenta que a sua explicitação da vida humana secular tivesse sido ignorada. Os mais ricos rejubilam com as leis do mercado a enriquecê-los inexoravelmente. Os homens sobrevivem como peças descartáveis das leis do mercado, esmagados pela religião da riqueza e do poder. Os Estados enfraquecem, a coesão social eteriza-se, a democracia esfarela-se na subserviência à inexorabilidade da economia.

O círculo vicioso está a laborar! Quanto mais doente estiver a vida humana melhor está a riqueza dos grandes donos da riqueza mundial.

2. A partilha do rendimento deixou de ser, maioritariamente, a apropriação do rendimento novo criado no processo produtivo porque os mercados financeiros e o poder de alguns operadores, associados à conivência, imobilismo e subordinação ideológica dos Estados, transformaram o enriquecimento de uns no menor enriquecimento, mesmo no empobrecimento, dos outros.

 “Como é bela a guerra económica”, ironizam uns. Como é triste a apropriação do rendimento alheio, recordam outros. Primeiro a situação passava-se nos mercados financeiros, com a intensificação das formas tradicionais de obtenção de valor novo criado pelos outros (mais intensidade do trabalho, diminuição salarial, gestão mundializada, negócios desiguais com os países subdesenvolvidos). Mas quem mais tem exige sempre mais, privatiza-se a segurança social e ampliam-se os fundos de pensões e de investimento, especula-se com os mercados energético, de matérias-primas e de produtos alimentares.

A crise económico-financeira iniciada em 2007/8 gerou aumento da dívida pública, seja porque eram conhecidos há muito os ensinamentos de Roosevelt e Keynes em tais situações catastróficas, seja porque muitos bancos e operadores financeiros, desmoronaram. Eis que amplia-se estrondosamente um novo mecanismo de transferência de rendimento à escala mundial: a dívida dos Estados. Para tal bastava um pequeno truque há muito defendido pelos liberais: os bancos centrais emprestam aos bancos e estes é que emprestam aos Estados. E assim foi possível colocar os povos a transferirem rendimento para o sector financeiro, exactamente aquele que, com a complacência dos Estados, reguladores e fiscalizadores, gerou a crise.

3. Mas não basta fazer, é preciso parecer, convencer. Revelam-se úteis as frases feitas facilmente assimiláveis pelo “Zé Povinho”: “é preciso investimento privado para criar emprego”; “o Estado, como as famílias não podem gastar o que não têm; “não sabe gerir”.

O investimento privado nos sectores produtores de bens e serviços podem gerar postos de trabalhos, dependendo das condições tecnológicas adoptadas, da divisão social do trabalho numa dada economia e das repercussões em cadeia sobre outros sectores. Mas não acontecerá nada disso se a aquisição tiver como objectivo dominante as operações de bolsa, as transacções sobre títulos, o desmantelamento das empresas para venda a retalho. Também não acontecerá se a aquisição e o encerramento for a forma de salvaguardar a empresa adquirente da concorrência.

Estado e famílias: é comparar o incomparável. A despesa de uma família é, para si, uma saída de rendimento. Sem qualquer contrapartida nas receitas. Contudo para o Estado, representante de uma sociedade, a despesa não é apenas utilização de receitas, também é de criação de novos rendimentos e novas receitas. Em proporções que dependem da estrutura da economia, do destino da despesa, da exigência de importações.

Quanto ao Estado ser mau gestor há que ter tino com as palavras. A questão não é de boa ou má gestão, mas de gestão para quem. Para os conselhos de administração, para as conivências político-económicas ou para a população. O problema é de objectivos. Parafraseando Tommy Douglas (social-democrata canadiano, já falecido) quando os ratos elegem gatos, pretos ou brancos, para os governar não é plausível que os gatos tenham nos seus objectivos o bem-estar dos ratos.

4. O que eram boas práticas foram adulteradas e corrompidas. O condicionamento do homem pelos mercados gera uma degenerescência das relações éticas. O curto prazo, transitório e manipulável, sobrepõe-se ao estratégico, frequentemente de longo prazo. A capacidade de decisão dos Estados dilui-se nas regras do mercado, com a capa de argumentos ideológicos que assumem a dimensão aparente da inevitabilidade. Com esse empobrecimento gera-se uma política económica condescendente para os economicamente fortes e feroz para os economicamente débeis. O planeamento assente na iniciativa privada transforma-se em regulação e esta tende para a desregulação. A fiscalização é assumida como um pernicioso entrave à possibilidade de circulação do capital sem barreiras. E porque os conflitos de interesse entre o económico e o político são estreitos, o melhor é mesmo descriminalizar o crime.

Só um tal ambiente justifica que grande parte do capital financeiro, as manobras fraudulentas com preços de transferência e movimentos contabilísticos financeiros, residam pacatamente nos paraísos fiscais e judiciários, enquanto a comunidade política e económica internacional finge que eles não existem ou que são, como os abutres, domesticáveis. E para o fazer confiam na OCDE, uma organização que engloba no seio os países mais responsáveis por estes desvarios.

5. É este o mundo de ética esparsa e fraude densa que nós queremos para os nossos filhos?

É preciso encontrar respostas e vontades.

Sócio fundador do Observatório de Economia e Gestão de Fraude