A Guiné-Bissau no sonho feliz de Eneida Marta

O concerto de Eneida Marta na Culturgest a 29 de Maio, um dia depois da sua estreia na Casa da Música, foi uma bênção para os sentidos. Repertório cuidado e uma excelente voz, a irradiar felicidade.

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Eneida Marta fotografada para a capa de Nha Sunhu Filipe Henriques

Como diz o povo, não há fome que não dê em fartura. Numa mesma noite apresentaram-se em Lisboa a guineense Eneida Marta, os cabo-verdianos Tubarões e o angolano Kafaf Epalanga. Como escolher, perante tão aliciantes propostas que vão levando África aos palcos do mundo?

O que se pode dizer é que quem escolheu ouvir Eneida Marta na Culturgest, no dia 29 de Maio, terá dado a noite por muito bem empregue. O largo interregno desde o celebrado Lôpe Kai, quase uma década, pesou a seu favor. A voz, de muito bom timbre e belíssimas modulações, a vogar entre os ritmos tradicionais guineenses e a tentação do blues, mostra-se mais amadurecida e eficaz. E, no palco, a sua presença enérgica irradia felicidade. O repertório apresentado, baseado na quase totalidade no seu recém-lançado disco de estúdio, Nha Sunhu, mistura dores antigas (as da Guiné-Bissau e as do seu povo) a histórias humanas de diversa índole, desde as mais heróicas às mais “brejeiras”, como ela lhes chamou. Quando cantou, por exemplo, Nha mininessa (minha infância, em português), Eneida reiterou o seu empenho no cargo de embaixadora da UNICEF e disse: “Fui criança, sou criança e pretendo continuar a ser criança.” E quando cantou Afrika Tabanka Povo, lembrou as falhas das “classes políticas, dos nossos governantes, que continuam a olhar para o seu umbigo, e coitado do povo.” Apesar disso, disse-o, acredita num melhor futuro para a Guiné-Bissau. As duas intervenções valeram-lhe, da plateia, calorosos aplausos.

Ouviram-se ainda Tchilaku na tabanka e Sunhu di koitadessa, antes de ela homenagear “uma grande mulher e voz africana, daquelas inigualáveis no campo da música”: Miriam Makeba. E cantou, de forma admirável e envolvente, a célebre Malaika. Só voz e baixo eléctrico. Como uma homenagem raramente vem só, ouviu-se depois Mamãe velha, a voz e piano, oportunidade para um emotivo dueto com Nancy Vieira (também em grande forma vocal). No final, um abraço prolongado entre as duas selou a proximidade possível entre Guiné e Cabo Verde. Proximidade que as palavras da canção já prenunciavam, palavras de um imortal poema de Amílcar Cabral.

Vieram depois o balanço rumbado de Canta tchuba, a rítmica irresistível de Bu tcholonadur, I korson di kim e Ratcha tara ou o desafio de Nha principe (só voz e guitarra). Ainda viriam temas como Amor livre ou Kabalindadi (os dois vídeos do novo disco que já circulam no Youtube), mas, antes disso, Eneida ainda quis homenagear outra mulher presente na sala: a sua mãe. Mindjer dôce mel, do disco anterior, e um dos seus temas mais difundidos, foi o tema escolhido. E a mãe até dançou.

No final, já depois de um duplo encore que começou com um tema do histórico poeta e músico guineense José Carlos Schwarz (1949-1977) cantado a capella, Eneida ainda arranjou energias (coisa que não parece faltar-lhe, a par de uma extraordinária boa disposição) para assinar os muitos discos que se iam vendendo aos que quiseram levar para casa a companhia da sua voz. Se há bons regressos à ribalta, este foi um deles. Que assim continue, pois Eneida bem o merece.

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