Passos muda discurso e defende maior integração económica e política

Contribuição para a reforma da zona euro enviada para Bruxelas à margem de qualquer debate nacional. Governo defende capacidade orçamental autónoma própria da zona euro para enfrentar novos choque assimétricos e facilitar reformas.

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Num processo muito discreto, dir-se-ia quase “clandestino”, o Governo português acaba de enviar para Bruxelas as linhas gerais do que entende ser a futura governação da zona euro, depois da crise da dívida soberana.

O tema faz parte da agenda do próximo Conselho Europeu, em 25 e 26 de Junho. Todos os governos foram convidados a enviar as suas contribuições para o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, e para o presidente da Comissão, Jean-Claude Junker, que deverão elaborar um documento de síntese que servirá de base de discussão aos líderes.

É a segunda vez que a União leva a cabo este exercício. Em 2012, com a Europa literalmente à  beira do abismo, Herman von Rumpuy coordenou um esforço idêntico sobre a arquitectura final da zona euro. A chanceler alemã acabou por recomendar que fosse metido na gaveta até melhor ocasião. Agora, quando a crise do euro ultrapassou aparentemente a sua fase mais aguda graças ao BCE (falta saber o destino da Grécia, o que não é pouco), o tema regressa à mesa dos líderes já numa perspectiva de mais longo prazo e com as lições dos ajustamentos levados a cabo nos países da troika e nos outros.

O documento português representa um corte quase total na forma como o primeiro-ministro conduziu a aplicação do programa de ajustamento, aceitando sem discussão a lógica da “punição para a redenção” defendida intransigentemente em Berlim.

As propostas são ambiciosas e claramente a favor da criação de instrumentos de natureza europeia capazes de enfrentar colectivamente os efeitos de choques assimétricos futuros, incluindo o avanço por fases em direcção a um verdadeiro orçamento da zona euro, constituído a partir de recursos próprios e não das transferências nacionais dos Estados-membros como actualmente acontece. As propostas que contém mereceriam facilmente a aprovação do PS, o que torna o secretismo ainda mais incompreensível.

O documento que foi enviado para Bruxelas tem claramente a mão do ministro-adjunto Miguel Poiares Maduro, cujo pensamento sobre a Europa é conhecido e reconhecido. Numa intervenção em Florença no início do mês, Pedro Passos Coelho já tinha assumido alguns dos aspectos mais relevantes do documento, incluindo a ideia de um Fundo Monetário Europeu “dotado da capacidade de financiar reformas estruturais e agir como catalisador do investimento”, que agora é levada ainda mais longe com a criação de um Fundo Monetário e Orçamental Europeu para a zona euro, com capacidade financeira para enfrentar choques assimétricos ou grandes crises, mas também financiar as reformas cujo custo social de curto prazo seja elevado.

Esta função permitiria uma partilha dos riscos, reduzindo os custos de ajustamento, limitando o recurso à ajuda financeira e a fortes abalos na coesão social. Uma das propostas vai no sentido da substituição parcial do regime nacional de subsídios de desemprego ou a europeização parcial das políticas activas de emprego.”

Fundo Monetário e Orçamental Europeu
O documento estabelece uma hierarquia de prioridades: acelerar a implementação da União Bancária e Financeira (nomeadamente com uma garantia de depósitos comum); criar a curto prazo um Fundo Monetário Europeu (FME), incorporando o actual Mecanismo Europeu de Estabilidade; estabelecer a mais longo prazo uma capacidade orçamental da zona euro, transformando o FME num Fundo Monetário e Orçamental Europeu.

A contribuição portuguesa também prevê o reforço das estruturas de governo da zona euro, com a institucionalização de um presidente do Eurogrupo e a criação de um governo económico que seja o contraponto do BCE, único responsável pela política monetária. Algumas ideias são velhas (como esta última, que a França sempre defendeu), outras resultam da reflexão sobre a crise.

A posição portuguesa está em linha com as contribuições de países como a Espanha ou a Itália, no sentido da defesa de maior integração económica e política. O documento italiano é, como seria de prever, o mais federalista. A Espanha defende uma estrutura para a zona euro idêntica à que é defendida pelo Governo português.

Com nove páginas e intitulado “Rumo a Uma Arquitectura Reforçada para a Área do Euro: aumentar a confiança e fomentar a convergência”, o documento reconhece que já se fizeram progressos significativos em resposta à crise, do Tratado Orçamental ao Mecanismo Europeu de Estabilidade, mas considera que estão ainda longe de serem suficientes, sobretudo num quadro de risco de fragmentação política e económica da Europa que está muito longe de estar afastado e que se expressa no crescente peso dos populismos de toda a espécie que invadiram a cena política europeia.

A urgência na conclusão da União Bancária é justificada pela necessidade de romper definitivamente com a ligação entre o risco soberano e o risco bancário e inverter a fragmentação financeira que prejudica sobretudo os países mais vulneráveis. “Uma União Financeira genuína é um instrumento determinante de afectar os meios financeiros e o investimento para onde se afigura mais necessário, aumentado o crescimento e o emprego”, defende.

É interessante a forma como justifica os novos instrumentos orçamentais, lembrando que os países do euro dispõem de menos instrumentos para enfrentar crises assimétricas, nomeadamente a desvalorização da moeda, obrigando-os a fazê-lo à custa da desvalorização interna [dos salários, nomeadamente], o que afecta a convergência económica real. Não poderia haver descrição mais fiel do que foi o seu programa de governo. A marca indelével do pensamento do primeiro-ministro também lá está, quando refere que Portugal não está á procura de solidariedade, “mas de um apelo à responsabilidade comum para enfrentar os desafios que nos afectam a todos.”

Eurobonds e mutualização da dívida na gaveta
O documento já foi discutido com a chancelaria de Berlim. Fontes governamentais disseram ao PÚBLICO que a recepção não foi entusiástica, mas que isso não impede que as questões sejam colocadas na agenda europeia. Um orçamento com recursos próprios vai ao encontro da recusa alemã de uma “união de transferências” que a Alemanha continua a recusar.

Da mesma forma, o facto de o documento não referir qualquer ideia de eurobonds ou de mutualização da dívida também agradará a Berlim. O problema é que, numa antecipação ao próximo Conselho Europeu, Paris e Berlim publicaram um documento comum para a reforma da zona euro que é absolutamente vago (mesmo que afaste a possibilidade de uma revisão dos tratados antes de 2017, o que é um primeiro desaire para David Cameron) e que acabará por limitar o efeito deste exercício, fundamental para dar de novo aos europeus a ideia de que todos podem ganhar alguma coisa, que a crise destruiu.

Porquê só agora esta mudança de visão? A resposta é previsível: "Era preciso repor a credibilidade do país perante os seus parceiros e credores, antes de apresentar os seus pontos de vista".

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