Um festival com vários festivais lá dentro

Passado à parte, também há presente e futuro nesta edição do NOS Primavera Sound. Um guia para o que está a acontecer agora, de FKA Twigs a Jungle, de Run The Jewels a Caribou.

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FKA twigs não fará um concerto consensual (nem é suposto que o seja): ver FKA Twigs em palco é imergir numa experiência hipnótica e misteriosa, tão auditiva quanto furiosamente visual DR

O cartaz do festival Nos Primavera Sound do Porto, como acontece todos anos, é constituído por um vasto cardápio que integra figuras emergentes, consagradas e veteranas que continuam a influenciar o ritmo da música popular. Patti Smith, os Underworld e os Ride pertencem a esta última categoria. O mesmo se podendo dizer dos alemães Einstürzende Neubauten, liderados por Blixa Bargeld desde os anos 1980, que vêm apresentar Lament (2014), o seu último álbum, onde reinventaram os ritmos maquinais da Primeira Guerra Mundial a partir de um espectáculo feito para assinalar o centenário do conflito.

No terreno dos consagrados estão ainda os americanos Interpol, uma das bandas que sobreviveram àquilo que, no início dos anos 2000, parecia o renascimento do rock. A peculiaridade dos nova-iorquinos sempre residiu na forma enxuta como criam canções rock com alguma solenidade. Não o fazem em bruto, mas sim condensando sensações e organizando-as de forma rigorosa. É essa a razão da sua individualidade. O mínimo de movimentos é capaz de gerar o máximo de eficácia emocional. É provável que os americanos já não tenham a mesma aura desses tempos, mas os indefectíveis continuam a ser muitos. O mesmo se poderia aplicar aos escoceses Belle & Sebastian, venerável instituição pop que vem apresentar o novo álbum, Girls In Peacetime Want To Dance, embora no seu caso, independentemente da actualidade, o que conta é uma relação de grande confiança construída ao longo dos anos com os fãs.

Antony e os seus Johnsons não têm um novo disco para defender, mas não será esse facto que os impedirá de conquistar um público que já sabe ao que vai. Ou seja, assistirá a momentos de grande expressividade emocional, até porque Antony afirmou-se ao longo da última década com uma linguagem assente na voz, no piano e na sumptuosidade dos arranjos. Há quem ache que a sua voz respira tanto melhor quanto mais esquelético é o edifício sónico que a envolve, embora no Porto até possa ser acompanhado por orquestra.

Mas também há muita música nova, alguma a chegar em primeira mão a Portugal, nas entrelinhas desta edição do festival. Do leque de figuras que deram nas vistas no último ano e que estarão presentes no Porto, destaque para a inglesa FKA Twigs, autora do álbum LP1. Vimo-la em palco há semanas e é difícil projectar o que acontecerá à sua música em contexto de festival, mas uma coisa é certa: nunca será um concerto consensual. Ouvindo a sua pop futurista, percebe-se que um espectáculo seu não pode ser um espectáculo vulgar. Mais do que um concerto, é uma experiência de dança imersiva, ou uma performance artística hipnótica, com bailarinos, músicos e cenário a instituirem um ambiente misterioso. É como se o imaginário de muitos dos seus vídeos, com formas fluídas pós-humanas, fosse transportada para palco através de gestos teatrais, voz sensual, baixos subsónicos e batidas lentas. 

Quem também vingou no ano passado foram os ingleses Jungle e os americanos Run The Jewels. Os primeiros são um duo que se alarga para sete membros ao vivo, expondo uma sonoridade soul-funk personalizada, com tanto de fervor à flor da pele como de contenção, sendo capaz de evocar o passado da música popular sem ficar presa a qualquer nomenclatura. Já os segundos constituem um projecto de dois nomes firmados do hip-hop (El P e Killer Mike). No ano passado editaram RTJ2, segundo volume do percurso iniciado enquanto duo, e as listas dos melhores discos do ano de muitas publicações por esse mundo fora acolheram-nos. Não era previsível. O seu hip-hop é denso e as rimas abrem-nos a porta do mundo contemporâneo, a partir de uma perspectiva convulsa e paranóica. Se em 2014 o Porto se balançou ao som de Kendrick Lamar, este pode ser o ano dos Run The Jewels.

O canadiano Dan Snaith, ou seja Caribou, vem mostrar o seu último álbum, Our Love (2004), e quem já o viu ao vivo com o seu naipe de músicos sabe que nas suas mãos a pop electrónica ganha contornos psicadélicos ainda mais visíveis, em longas sessões hipnóticas onde existe espaço para o sentido lúdico e para rituais de experimentação com doses de fisicalidade.

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A dupla de El P e Killer Mike editou em 2014 RTJ2, acolhido como um dos melhores discos do ano por várias publicações DR

Também do Canadá virão os Viet Cong, uma das revelações do presente ano, com uma música rock efervescente que não recusa a veia de transmissão do pós-punk, mas que não fica amarrada a ela no álbum homónimo de estreia. Possuem alguma da impetuosidade do punk, expondo uma tensão colérica à beira do apocalipse, mas com inteligibilidade e sentido de comunicação. Há grito. Mas é um grito com sentido.

Para visões mais singulares – ou excêntricas, conforme as interpretações – do cancioneiro indie actual, será obrigatório mergulhar nos concertos do canadiano Mac DeMarco e do americano Ariel Pink, garantia de psicadelismos, neuroses e iconoclastia diversa, à volta da música das últimas décadas. Nem sempre funciona, dizem uns. Quando funciona é em cheio, dizem outros. Em palco todas as ilações serão tiradas, até porque o NOS Primavera Sound é o tipo de festival que permite que cada um construa o seu itinerário de escolhas.

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Uma das revelações do ano corrente, Viet Cong: rock efervescente que não recusa a veia de transmissão do pós-punk DR

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