O estrelato num cartão SIM

A mais recente jóia da música tuaregue tem uma voz prodigiosa e uma mão esquerda que dá alegrias a qualquer guitarra. Um americano descobriu Mdou Moctar num cartão de memória de telemóvel e perseguiu-o por todo o lado decidido a torná-lo uma estrela no Ocidente. Esta sexta-feira brilha em Lisboa, sábado no Funchal.

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Não pode ser mais fácil do que isto: escrevam Mdou Moctar no motor de busca do Google e cliquem no primeiro vídeo que surge, publicado a 13 de Abril de 2012. “Esse vídeo”, diz Moctar, sentado no sofá de um hotel em Lisboa, “passou-se num casamento”. Há um baterista e Moctar na guitarra eléctrica, com ar de imensa felicidade, descarregando doses valentes de electricidade, enquanto a multidão salta e dança ao redor dele, meia ensandecida. “Toquei muito, nesse dia”, diz Moctar. “As pessoas estavam muito contentes."

Pouca gente saberá, mas no Níger este homem é um herói, adorado pelas massas. Certo, não serão os concertos que ele dá esta sexta-feira em Lisboa e um dia depois no Funchal (onde integra o programa do Festival Aleste) que o farão destronar Tony Carreira no coração dos portugueses, mas é muito possível que quem se deslocar ao Musicbox ou ao Complexo Balnear da Barreirinha venha a sentir a mesma alegria que a malta daquele casamento. Caso estejam na dúvida, é simples: basta dar um pulo à prateleira que lhe é reservada no site da Sahel Sounds para encontrar links de toda a discografia de Moctar no Bandcamp. São só dois discos oficiais, Anar (2008) e Afelan (2013), mas a editora incluiu discos de compilações em que Moctar aparece – bem como a sua guitarra cheia de volteios. 

Os concertos dos próximos dias em Portugal fazem parte da actual digressão europeia de Moctar. Mas se hoje ele é o mais óbvio caso de exportação da nova música tuaregue, a sua história não é nada simples: envolve trabalhos pesados, quase escravidão, auto-tune e um americano a procurá-lo por toda a África, até o descobrir via Facebook. E acaba num filme.

Mdou Moctar nasceu em 1985, em Abalak, perto de Agadez, no deserto do Níger, que não era propriamente a terra mais desenvolvida do mundo: “Por ali havia uma povoação com electricidade, mas nós, quando eu era pequeno, não tínhamos”, diz. Acabou de chegar do aeroporto e está em Lisboa de passagem para outros concertos, antes de regressar para a data no Musicbox. É canhoto, não tem alguns dentes da frente e usa uma t-shirt roxa com o número 69 a branco nas costas. A mais improvável estrela rock que encontrarão.

Em miúdo, conta-nos, gostava de ouvir Abdallah ag Oumbadougou, nome que escreve cuidadosamente no nosso caderno, visto nunca termos ouvido falar dele, e também apreciava Ali Farka Touré, cuja música ouvia em cassete. Construiu a sua prória guitarra e começou a tocar “muito novo”. “Ao início, só tocava as canções de outros. Do que as pessoas gostavam era da minha voz”, diz, rindo-se. Acabou o décimo ano, ou pelo menos é isso que conclui depois de fazer um esforço de memória e contar pelos dedos os anos que estudou. Seguiu para a Líbia para “tentar fazer dinheiro para a família”: “A minha família é muito grande e precisavam de ajuda." Teve vários trabalhos, mas na maior parte deles “procurava água no deserto”. “Faz-se um buraco aqui, um buraco ali, sempre à procura de água. Estive um mês a aprender, depois fiquei a trabalhar lá três anos." 

Retornou ao Níger em 2005 porque “não havia respeito pelos direitos humanos na Líbia”. “Trabalhava e não me pagavam. Era como se fosse um escravo. Se reclamasse podiam matar-me. Acabei por conseguir que algumas pessoas me pagassem, outras não pagaram, mas assim que tive dinheiro voltei para casa." Ainda assim, nem tudo foi mau na Líbia. Por algum tempo deixara a guitarra de lado, mas um dia um acontecimento aparentemente inocente mudou tudo: “Vi um concerto do [Paolo] Radoni [guitarrista de jazz], e fiquei tão maravilhado que me veio a vontade de voltar a pegar na guitarra”. Quando Moctar partiu para a Líbia já tinha canções suas. Quando voltou, o número de composições crescera imenso. 

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Mdou Moctar gravou o seu primeiro disco na Nigéria; o segundo foi registado ao vivo no Níger, sem efeitos electrónicos, muito mais centrado na guitarra e na voz

O Prince do Níger
De regresso a casa, começou por “tocar apenas com os amigos”. "Depois houve um dia em que me convidaram para tocar num casamento, e pagaram-me. Foi a primeira vez que ganhei dinheiro com a música." No Níger, o trabalho que havia para os músicos era precisamente "em casamentos, festas, eventos oficiais”.

Nisto surgiu a oportunidade de gravar Anar, o primeiro disco a sério – feito na Nigéria, porque “no Níger é muito caro”. Um disco que parece de outro mundo: temos as guitarras árabes de que os Tinariwen se tornaram os maiores embaixadores, e depois beats género kuduro quadrado e voz com auto-tune. Uma coisa nunca ouvida.

“Os miúdos da Nigéria usam muito o auto-tune e outros efeitos electrónicos, particularmente na música house”, conta Moctar. As coisas tinham mudado e ele apercebeu-se disso: “Os sons electrónicos, o auto-tune, eu apreciava-os e não os encontrava na música tuaregue. Por isso modernizei-a. Porque é que a música tuaregue não há-de ter estes sons? É tudo música." Hoje Moctar acha que “talvez tenha sido por isso que o disco pegou: os miúdos já estavam habituados àquele som, só que não na música tuaregue." As pessoas “ficaram doidas com o disco”, que explodiu “de um dia para o outro”. “Agora sou amado no Níger”, diz.

De repente, já não era só no Níger: estava a dar concertos longe da sua terra, a ir a festivais. E foi aí que entrou Christopher Kirckley, que é hoje o seu agente. E esta é a parte em que a história de Moctar volta a tornar-se uma odisseia.

Kirckley tem uma editora, a Sahel Records, que funciona como uma espécie de arquivo sonoro electrónico da região do Sahel, uma faixa que atravessa a África subsaariana de Oeste a Leste. Por ali, os telemóveis são o único suporte em que a juventude pode guardar a sua música. Kirckley dedicou-se à recolha dos cartões de memória (os SIM) dos telemóveis, dando com música extraordinária, a maior da qual por identificar. Lançou várias compilações com canções aí encontradas. Numa delas incluiu Anar, a faixa que dá nome ao primeiro disco.

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“Ele estava na Mauritânia quando escutou as minhas canções. Não sabia quem eu era, mas voltou a encontrá-las no Mali e achou curioso que eu andasse a ser ouvido em tantos sítios – coisa que nem eu sabia. Então começou a perguntar por mim, disseram-lhe que eu cantava na língua dos tuaregues do Níger e ele foi para o Facebook procurar os tuaregues daquela zona. Encontrou um amigo de um amigo meu, escreveu-lhe, pediu-lhe o meu contacto e telefonou-me dos Estados Unidos da América." 

Moctar não acreditou que Kirckley estivesse a falar verdade. “Como é que a minha música chegara tão longe? Não era possível. Pensava que aquele telefonema era treta, que era uma peta pregada por um amigo. Mas o Christopher disse que me ia visitar – e fê-lo, apareceu lá. Foi só aí que acreditei nele."

Afelan, o espantoso segundo disco de Moctar, gravado ao vivo, sem efeitos electrónicos, muito mais centrado nas capacidades do artista, na guitarra (eléctrica ou acústica) e na voz, foi gravado por Kirckley. “Gravámos na altura em que ele me visitou. Eu ia dar um concerto e ele aproveitou e gravou-o. Tinha vindo com o seu próprio material de gravação." 

Se Afelan é o disco em que Moctar deixa de querer ser uma estrela pop para almejar tornar-se uma estrela internacional da música de raízes, então o passo seguinte foi ainda mais estranho: “Fizemos um filme, chama-se Akomok e vai sair ainda este mês”. No filme, a que o Village Voice chama “o Purple Rain [de Prince] do Níger”, Moctar é o actor principal. Ele explica que Akomok fala sobre alguém que é quase como ele, fala da sua história. E, como que corroborando a ideia do Village Voice (que aliás começa o seu texto sobre o filme com a frase: "Por favor, páre com tudo o que está a fazer agora e escreva Mdou Moctar no Youtube"), complementa: “É como se fosse o filme do Prince." 

Um disco com as canções novas que surgem no filme está já preparado e entretanto Moctar já está a fazer outro álbum, “que é muito mais melódico”. “São canções em que os jovens se sentirão elevados, canções que põem para cima, mas o meu lado rock'n'roll está lá."

Toda esta história parece tão improvável que só pode ser verdadeira. Quais as chances de um tipo encontrar um cartão SIM, gostar do que ouve e conseguir encontrar essa pessoa no meio do deserto africano? No meio disto, Moctar começa agora a ser exposto à cultura ocidental. E também tem feito as suas descobertas. Por exemplo: na última digressão pelo Ocidente, descobriu “um músico extraordinário” que é agora o seu “preferido”. “Foi a grande descoberta da minha vida. Chama-se Jimi Hendrix. Conheces?”

Até que sim. Oiço ecos dele em Chet Boghassa, a segunda faixa de Afelan. Oiçam também.

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