A catástrofe

Um dia ouviremos na televisão que a desgraça já está em marcha e nesse dia ninguém nos virá salvar.

Não tinha quatro ou cinco anos, tinha três, no dia da minha primeira catástrofe política. A família, a do meu avô, estava à volta da telefonia, uma enorme caixa de um metro e meio de altura, como nessa época usavam as pessoas com dinheiro.

O meu avô, com a sua inabilidade para coisas mecânicas, tentava encontrar uma estação. Mais precisamente, a estação oficial alemã. Solene e grave, a assistência não abria a boca. De repente, apareceu uma voz (que depois soube que era a voz de Hitler),vociferando com muita clareza. A família ouviu com recolhimento e pavor. Hitler, ao que parece, anunciava uma ofensiva contra a linha aliada, que devia levar a Wehrmacht a Antuérpia e separar o exército inglês do exército americano. A família ficou esmagada e, tanto quanto me lembro, não houve um único comentário. O putativo horror que se aproximava não era descritível.

Como não falava alemão, não percebi o que se passava. Mas de qualquer maneira o medo do meu avô, do meu pai e dos meus tios acabou também por se me pegar: o mundo literalmente tremia e por um pouco que não acabava ali. Vinte e cinco anos mais tarde, apreendi que Hitler já perdera a guerra em 1942 e que a ofensiva no Ocidente (1944), condenada à partida, não valia nada. Isso foi mais tarde. Só que o sentimento de catástrofe política voltou: no final do PREC e, pouco a pouco, volta agora, à medida que a sociedade se dissolve, o discurso público se torna radicalmente absurdo e cresce a impotência do regime. Nenhum partido, à esquerda e à direita, tem a força e clareza de ideias para nos devolver destino.

Sucede que muitos pedem “confiança” ou “prudência”, mas não existe “confiança” ou “prudência”, quando de lado a lado as promessas se tornaram, de facto, em “apostas”, quase sempre insensatas, que por si bastavam para arruinar a República. O sr. Cavaco Silva devaneia, enquanto vai enfraquecendo e restringindo o seu próprio poder. O primeiro-ministro apura a sua própria personagem para consumo eleitoral. O chefe da oposição anda perdido num pequenos caos de planos, de propostas, de medidas, que perturba toda a gente e não esclarece ninguém. E o cidadão comum, se não desistiu já de se interessar, espera com inquietação que Portugal estoire sem aviso e sem remédio. Um dia ouviremos na televisão que a desgraça já está em marcha e nesse dia ninguém nos virá salvar.

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