Gatos japoneses

Incomodam-me os gatos. São admiráveis na sua elegância, feitos de gestos coreográficos, bailarinos acrobáticos, matizados com distinção. São lindos. Mas incomodam-me. Sei que é porque não lido bem com os seus súbitos ataques. Essas repentinas ideias predadoras que lhes passam pelas cabeças malucas e os põem em fúria contra seja quem for. Só de estar, sou escolhido normalmente pelos gatos para vítima. Nem que lhes dê comida ou os afague, se precisarem de afiar as unhas vão querer as minhas costas.

Em Tóquio podemos tomar chá num bar de gatos. Enfim, um lugar meio estranho e algo decadente onde umas dezenas desses felinos se espalham livremente, cheios de aconchegos e estruturas trepantes para que se sintam felizes. A clientela, entre alguns turistas sempre coscuvilheiros, é composta sobretudo por uma certa trupe solitária que busca na mística complexa do gato um afecto importante para a urbanidade desafiadora da cidade.

Os gatos amam sobretudo por interesse. São oportunistas e mudam de dono se perderem as condições que consideram necessárias para o seu bem-estar. A sua fidelidade depende da estabilidade das benesses e do sossego. De facto, um indivíduo que se veja desalojado e vá viver para debaixo da ponte dificilmente convence o seu gato a acompanhá-lo na vida. Isso já não se passa com os cães, que padecem solidariamente com os donos, invariavelmente capazes de uma alegria sincera apenas por permanecerem juntos.

Neste sentido, dizer que alguém colmata a solidão com um avaro carinho de gato num bar induz a uma tristeza profunda. Suponho que pessoas procurem estas experiências para se sentirem especiais, porque há o mito de que os gatos é que escolhem, como se escolhessem bem, como se escolhessem os melhores. Isso é uma treta. Os gatos escolhem os que aparentam ser mais generosos, aqueles que com facilidade lhes concedam o que querem.

No âmbito das gravações do novo documentário do Miguel Gonçalves Mendes, pensei acerca do que me poderia ser incómodo e entristecedor em Tóquio e propus que avançássemos para o chá dos gatos. A propensão para espirrar com os pêlos deles pelo ar, a probabilidade de ser ferrado, arranhado, cego ou, no mínimo, ameaçado era tremenda. De todo o modo, não me interessavam os gatos, antes os clientes. E entendi logo que o sistema é ainda mais perverso do que previa. Por trezentos ienes compram-se umas pequenas caixas de peixe meio seco, iguaria que atrai os bichos como a melhor das flautas encantadas. O que descamba num jogo de corrupção pela gula que desencadeia facilmente uma competição entre os solitários clientes que, para se terem rodeados de gatos, seguem comprando e oferecendo os iscos. Põem-se os bichos a barafustar uns com os outros, assanhados aqui e ali, uma e outra vez, a reclamarem dos velhotes mais serviço, mais comida. Ocorreu-me que, sem sexo, aquele bar prostitui os gatos. Ficam bailando, aquelas caudas a passar nas pernas e nos pescoços de quem entra, pagos a lascas de peixe como se de dinheiro se tratasse. Dinheiro de gato, claro.

Esmagadora, Tóquio não é uma cidade desumana. Por mais futurista ou espessa, não perdeu um bem-estar incomum em lugares de grande dimensão. Temos sempre a impressão de que são bem possíveis aquelas coisas clássicas do amor e da amizade. Assim, não é tão imediato que queiramos naturalizar estas bizarrias. Estive no bar a proteger-me como soube e a ponderar sobre esses japoneses que, cordiais como poucos povos do mundo, perdem contudo o caminho uns para os outros, praticando uma espécie de contemplação silente do mundo, passando pelo mundo numa míngua tão grande de tudo que a fugaz sedução de um gato desconhecido se assemelha a uma promessa profunda da sabedoria misteriosa da natureza.

Um gato escolheu o meu colo. Não o afaguei. Fiquei na dúvida se desentendeu que não me sinto confortável com gatos ou se, por isso mesmo, me veio provocar. Era magrito e bonito. Não desgostei, fiquei apenas muito desconfiado.     

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