Contra o esquecimento: perguntas sobre a história e a ideologia da crise
A história é, de facto, muito maçadora para a reconstrução a posteriori dos factos.
Não. Essa é a tese Maçães de que, desde o 25 de Abril, Portugal foi um país socialista com breves hiatos de não-socialismo, aliás, muito pouco consequentes. Até chegar Passos Coelho. Esta tese a-histórica e ideológica destina-se a encontrar uma causa monotemática para os problemas portugueses. A narrativa é esta: o Estado, alimentado pelos “socialistas” (nesta matéria Cavaco é o maior socialista), intervencionista na economia, pensando que os problemas se resolvem “atirando dinheiro” para o bolso das pessoas, limitando a “liberdade económica”, é que explica a falta de competitividade da economia portuguesa, o seu baixo crescimento, os seus atavismos sindicais.
Um dos efeitos secundários não pretendidos desta tese é desresponsabilizar a governação Sócrates de 2008 a 2011, em que o disparo negativo de muitos indicadores se deu, apresentando-o apenas como um continuador das mesmas políticas de Cavaco, Guterres e Durão Barroso.
Mas afinal o que é que levou à bancarrota?
As causas próximas da bancarrota foram três: a governação irresponsável e perdulária de Sócrates (que já fora o menino querido da direita de 2005 a 2008), a recusa do apoio alemão consubstanciado no chumbo do PEC IV, que obtivera o acordo de Merkel, e os efeitos do disparo dos juros resultado da situação gerada pela Alemanha ao suscitar uma “crise das dívidas soberanas”, tendo como alvo a Grécia. À data do PEC IV, a Alemanha já se apercebera dos efeitos em dominó da “crise das dívidas soberanas” e temia o contágio para a Espanha e a França. Por isso, foi complacente com Sócrates e ficou furiosa com o PSD e Passos Coelho quando este chumbou o PEC IV. Os “mercados” fizeram o resto e a bancarrota era inevitável.
Pode-se sempre dizer que os atrasos endémicos da economia portuguesa e o seu problema estrutural de competitividade estão na base de todas as crises. Mas, dito apenas assim, é um truísmo que não explica a crise de 2011 nas suas diferenças com as anteriores, nem legitima muitas das conclusões que a partir daí se tiram.
A campanha eleitoral de Passos Coelho em 2011 foi um logro?
Foi e não foi. Teve aspectos de logro, de engano, de promessas eleitorais puras e simples, mas traduzia as ideias com que o PSD votou contra o PEC IV, ou seja, a austeridade não era necessária e seria possível aplicar o memorando sem penalizar as pessoas. Convém sempre lembrar que as eleições de 2011 se realizaram já quando o memorando estava aprovado e o PEC IV foi chumbado porque trazia austeridade a mais, “desnecessária”, que “castigava” as pessoas, as famílias e as empresas. A leitura desse debate parlamentar é das mais instrutivas que se podem fazer, mas é coerente com o teor da campanha eleitoral que se lhe seguiu. A história é, de facto, muito maçadora para a reconstrução a posteriori dos factos.
Quantas interpretações do memorando e da troika teve o Governo?
Pelo menos três: a primeira, que assentava numa interpretação mitigada do memorando, não muito diferente da que Sócrates fizera ao apresentá-lo, como permitindo o desenvolvimento económico, visto que a troika teria tirado as “lições” da Grécia, e que durou desde a sua assinatura até ao falhanço do controlo orçamental visível na preparação do Orçamento em 2012; a segunda, entre o falhanço do controlo do défice em 2012 e o ano eleitoral de 2015, que assentava na “austeridade expansionista”; e a terceira, a vigente, adaptada às eleições, de que foi um “mal” de que nos livrámos e queremos deixar para trás o mais cedo possível.
É confuso? É, mas foi assim. É por isso que eu não estou assim tão certo em classificar de “neoliberal” Passos Coelho, embora hoje essa classificação lhe possa ser bem aplicada, desde que se converteu a Singapura, e o é ainda com mais propriedade à sua equipa. Mas há muita gestão oportunista da política: desenvolvimentista contra Ferreira Leite, laxista no chumbo do PEC IV, “neoliberal” depois de dizer que o “programa da troika é o do PSD”. Agora, vai ser de novo social-democrata até às eleições.
Quando é que o Governo percebeu que não controlava o défice atacando aquilo que dizia serem as "gorduras do Estado"?
Muito mais tarde do que se pensa. A primeira medida de austeridade foi apresentada como a única necessária e irrepetível e foi o corte de metade do subsídio de Natal em 2011. Pela argumentação dada na altura, percebe-se que o Governo estava longe de entender a “austeridade” do memorando nos termos em que depois a veio interpretar. O momento mais agudo dessa percepção foi em Outubro-Novembro de 2012, quando, depois de uma reunião com a troika, o primeiro-ministro saiu com ar de desespero a apelar ao PS para uma revisão constitucional para se encontrarem os quatro mil milhões necessários. A partir daí a austeridade passou a “virtuosa”.
Existiu qualquer plano para cortar as "gorduras do Estado"?
Não. Nunca existiu, nos últimos quatro anos, nenhum plano de reforma do Estado que não fossem cortes cegos e despedimentos que nada têm com a “reforma do Estado”. O copy-paste de Portas não conta, a não ser como revelador do vazio. Existiram medidas demagógicas e com efeitos perversos, como seja a eliminação de muitos dos cargos de chefia na função pública em nome do afastamento dos boys do PS. Para além de muitos lá continuarem, o que aconteceu foi que muitos outros entraram de novo.
O efeito desta medida foi deixar os ministérios dependentes dos novos boys partidários, que entraram como assessores e consultores, e gastar milhões com consultadoria e serviços jurídicos que a máquina do Estado deveria fornecer através da alta administração pública. A escolha de escritórios de advogados e empresas de consultadoria fez-se entre os próximos do Governo, criando assim uma extensão da partidarização do Estado por via do outsourcing. Os custos subiram em flecha.
O resgate de 2011 é igual aos anteriores?
Não. As suas causas podem ter elementos comuns, mas são distintas quer no modo, quer nos efeitos. Os resgates anteriores fizeram-se antes do fim da moeda nacional e penalizaram as pessoas por via da inflação. Esse efeito é mais equitativo e durou menos. A duração é um elemento essencial em democracia, e a ideia que está implícita no actual “ajustamento” é que ele é para durar pelo menos uma década. Como estamos em ano eleitoral, houve um abrandamento da austeridade, mas, se a coligação continuasse a governar, voltaríamos à austeridade de longa duração.
Quem fala de três resgates fora da sua forma, do seu tempo e da sua conjuntura está aplicar a tese de que Portugal foi sempre “socialista”, ou seja, estatista, e que isso significa periodicamente resgates. Trata-se de novo de uma versão a-histórica e ideológica destinada a justificar “que não há alternativas”.
A troika foi mal recebida por Passos Coelho e por Portas?
Não. Foi muito bem recebida, quer na versão benévola dos primeiros meses, quer na versão dura de 2012 em diante. O representante do PSD nas negociações gabou-se dos resultados obtidos, em que afirmou que teve papel proeminente. Passos Coelho afirmou que o programa do PSD era o memorando da troika, e esse memorando foi saudado por muitos como a necessária pressão exógena para a mudança endógena. Já que os portugueses não queriam mudar, agora as autoridades europeias e o FMI faziam-nos mudar à força. Todo um programa de direita que nunca tinha ousado aparecer às claras, muito menos apresentar-se a eleições, encostou-se à troika para justificar as alterações da legislação laboral, os despedimentos, o desmantelamento de parte do Estado, os cortes nos salários, pensões e reformas. O esquecimento activo do ano eleitoral não pode beneficiar os infractores.
As medidas mais duras de austeridade nos últimos anos são de autoria do Governo ou da troika?
Ainda não é possível fazer esse balanço definitivo, mas tudo indica que foram propostas pelo Governo e aceites pela troika, até porque muitas não se encontravam no memorando original. É por isso que é vital para se fazer um julgamento histórico e político conhecer a correspondência electrónica entre o Governo e a troika e outras instâncias, actas de reuniões e outros elementos que deveriam (insisto, deveriam) ter sido preservados para memória futura. Muita coisa vai sempre escapar (por exemplo, Vítor Gaspar usava os computadores dos elementos da troika), mas isso é um elemento essencial, tanto mais que o Governo através de confidências de veracidade duvidosa a alguns jornalistas (o livro de Luís Reis Pires jornalista do Observador é disso um bom exemplo) já está a mudar a história, apresentando-se como campeão da resistência à troika.
(Continua.)
Historiador