O Palmarés de Cannes goes East

Mountains May Depart, melodrama de Jia Zhang-ke, e The Assassin, filme de artes marciais de Hou Hsiao-Hsien, são considerados favoritos para o Palmarés. O júri, presidido pelos irmãos Coen, anunciará os prémios este domingo.

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Em Mountains May Depart Jia Zhang-Ke é um cineasta do melodrama dr
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Em The Assassin, Hou Hsiao-Hsien filma as artes marciais com a melancolia no chão dr

Depois do de Welles, Kurosawa ou Polanski, um outro Macbeth. Que não chega a acontecer, interminável trailer a fechar a competição da 68ª edição do Festival de Cannes, manias de videoclip a fazer posters com silhuetas na guerra, inferno de publicidade com vedetas a fazerem-se intensas por ali, e a música que não se cala. Uma escolha que teve um propósito claro: impedir a debandada da imprensa e dos paparazzi antes do fim, acenar com o isco Michael Fassbender e Marion Cotillard, os intérpretes do grande nada que é o filme do australiano Justin Kurzel – juntamente com The Sea of Trees, de Gus Van Sant, o pior do concurso.

Vedetas e inferno? Tivemos isso ontem, Gerard Depardieu e Isabelle Huppert, o par mais comovente, os actores mais delicados (e dos mais eruditos, o que é muito sexy) e o filme mais despido do concurso de Cannes: Valley of Love, de Guillaume Nicloux, de quem vimos há pouco, nas salas portuguesas,  L'enlèvement de Michel Houellebecq. Certamente que não chegará ao Palmarés, porque esta história de pais entregues a si próprios no Death Valley, juntos por uma carta de um filho morto (é só para quem acredita), é um filme nada alinhado com as linhas de força que se foram afirmando ao longo destes dias.

Foi uma solidão partilhada com La Loi du Marché, de Stéphane Brizé, filme com Vincent Lindon a tentar fazer parte do mercado de trabalho, outro que despe as fardas habituais do seu género - devia ser cinema social… Se a decisão, pela equipa de Thierry Fremaux, delegado geral do festival, de reservar espaço para cinco títulos franceses na competição foi olhada com suspeita de favorecimento e foi mesmo criticada, vistos os resultados que iam desfilando, pela imprensa francesa (no final do débil Mon Roi, de Maiwenn, alguém gritou “nepotismo”), estes dois filmes resgatam a honra do convento ao escândalo. Dos três italianos em competição, Il Raconto dei Racconti, de Matteo Garrone, Mia Madre, de Nanni Moretti, Youth, de Paolo Sorrentino, pode-se dizer que a impressão geral é muito mais lúgubre, a de uma cinematografia a esbracejar com desespero perante a memória do seu passado – ou perante as dificuldades da memória. Isto, claro, vale mesmo que o Youth de Sorrentino chegue ao Palmarés, ou mesmo à Palma (como muitos julgam adivinhar), porque o valor de um nome no “mercado”, ou a forma como ele se coloca em bicos de pés para se disponibilizar “pronto-a-premiar” é apenas um espectáculo grandguinolesco à parte.

Regressando à nada espalhafatosa beleza de Valley of Love ou à inquieta secura de La Loi du Marché, rodado com pequena equipa, pequeno orçamento, sem argumento, que não conta tanto uma história quanto se deixa invadir por ela: só fora de competição, na Quinzena dos Realizadores, o acontecimento As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes, exibido em três volumes, seis horas de duração, foi capaz de, exibicionismos à parte, despir-se da mesma maneira, atirar-se para uma aventura algo lunar em que o mundo se reinventa a partir do nada, sem género. Mas para efeitos de Palmarés isto não conta, e pode-se talvez começar a concluir, depois da energia que se gerou ali naquela zona da Croisette mais afastada da competição, que o melhor que podia ter acontecido ao filme português foi mesmo ter sido recusado pelo concurso.

É aí que regressamos, aos títulos de que se fala para o palmarés final, a anunciar no domingo por um júri presidido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, que comandam Sophie Marceau, Jake Gyllenhaal, Rokia Traoré, Guillermo del Toro, Xavier Dolan, Sienna Miller e Rossy de Palma: Youth, de Sorrentino, Carol, de Todd Haynes (melodrama muito perto de um certo paraíso de luxo, o da convenção, da carpintaria de argumento e da construção de personagens), Le Fils de Saul, de László Nemes (um dia e meio nos fornos de Auschwitz, filme tão investido da tarefa de vigiar o voyeurismo e de se livrar do perigo da indecência, que trabalha imenso para se superar; o virtuosismo será naturalmente premiado), e aos filmes em que reencontramos Jia Zhang-ke (China) e Hou Hsiao Hsien (Taiwan) determinados no cinema de género.

Em Mountains May Depart, Jia Zhang-Ke metamorfoseia-se em cineasta do melodrama (quase) mainstream, e vai em linha recta do apaixonante início, ao som de Go West, dos Pet Shop Boys, ao caricatural final. Em The Assassin, Hou Hsiao-Hsien filma as artes marciais sem cambalhotas e sem voos, com a melancolia no chão – também com uma intimidante ferocidade a construir e a fulminar com a sua beleza. A ser assim, poderá ser dois em um: a cinefilia mais dura conforta-se em redor de dois nomes amados que fizeram filmes mais abertos, de descodificação mais imediata e espectacular para todos. Não é tempo mesmo para desempregados ou para maduros actores a tactear a dúvida e o cinema no deserto. Tem de se dizer que a Croisette convence-se, neste momento, que o Palmarés da edição Cannes 2015 goes East.

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