O TTIP e o futuro da ordem internacional liberal

Talvez David Cameron devesse ter dito no encontro na Irlanda do Norte que o TTIP é o maior acordo geopolítico desde a criação da Aliança Atlântica.

Em 2013, na inauguração dos trabalhos da cimeira do G8, em Lough Erne, na Irlanda do Norte, David Cameron referiu-se à Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) como “o maior acordo comercial bilateral da história”, acrescentando que ele “terá mais impacto do que os todos outros acordos comerciais em cima da mesa combinados”.

Esta afirmação do primeiro-ministro britânico peca muito provavelmente por defeito. O TTIP não é apenas o grande acordo comercial. Ele é um momento geopolítico essencial de cujo sucesso pode depender o futuro da ordem internacional liberal. Porém, as notícias que chegam dos EUA nestes dias são preocupantes. Está em curso uma luta no Senado norte-americano para travar o sucesso da Parceria Trans-Pacífico (TPP) e do TTIP, tendo chegado a ser bloqueado o pedido de Obama para lhe ser dado poder para negociar acordos de comércio livre de forma rápida. E mesmo o entendimento entre os líderes dos republicanos e dos democratas na câmara alta do Congresso para desbloquear a questão está longe de resolver o problema. Basta olhar para as posições de vários membros do Partido Democrata, como, a título de exemplo, Elizabeth Warren.

O que está em jogo é crucial. O TTIP é na sua natureza um acordo bilateral de comércio livre entre a União Europeia e os Estados Unidos da América com o objectivo de fazer crescer as economias dos dois lados do Atlântico, sobretudo tendo em conta os novos desafios da economia internacional.

Todavia, apesar da sua importante componente económica, o TTIP não pode ser apenas visto nessa perspectiva. Ele é essencialmente uma decisão geopolítica, pois é a criação de uma relação EUA-UE mais estratégica, que melhor posiciona os dois actores face às potências emergentes e ao mercado livre e que fortalece as regras básicas da ordem internacional (na boa definição de Hamilton e Quinlan).

A Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento surge num momento em que se discute nas relações internacionais as questões da transição de poder e da diversidade no sistema internacional. Durante os primeiros vinte anos pós-1989, o bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos e tendo como “braço direito” a União Europeia, era o garante da estabilidade internacional. O triunfo na Guerra Fria permitiu o reforço do regime económico do mercado livre e da globalização, cujas regras foram codificadas na Organização Mundial do Comércio (OMC) criada em 1995. No entanto, no final dos anos 2000, assistimos a um conjunto de fenómenos económicos e políticos que originaram a ascensão de novas potências – a China e a Índia, no continente asiático, e o Brasil, no continente sul-americano – e o declínio de poder relativo do bloco ocidental. Apesar de estas novas potências terem acordos bilaterais com vários estados-membros da União Europeia e com os Estados Unidos, tem-se assistido à sua crescente relutância em aceitarem a hegemonia ocidental, com destaque para algumas decisões de política externa americana na última década.

Este fenómeno tem particular incidência no campo económico. Ainda que seja cedo para apontar reformas estruturais do regime económico internacional, há claros exemplos de insatisfação relativamente ao modelo ocidental. Três exemplos concretos: o “capitalismo de estado” chinês é cada vez mais frequentemente apontado por países em vias de desenvolvimento como um modelo a seguir. Da mesma forma, a China tem criado relações comerciais privilegiadas com países Africanos e Latino-Americanos com vista a preencher as lacunas do sistema comercial americano e europeu. O Brasil e a Índia não têm perdido oportunidades de vocalizar o seu descontentamento nas várias rondas da OMC. Muito recentemente, os BRIC´S criaram o seu próprio Branco para o Desenvolvimento, que, apesar de segundo os seus fundadores não ter como fim substituir o FMI, está a desenvolver um sistema de empréstimos com regras diferentes do Fundo Monetário Internacional.

Assim, em última análise, o TTIP é uma forma institucionalizada de utilização da preponderância económica e política do Ocidente para manter as regras da ordem internacional, muito em especial os dois alicerces da sua concepção ocidental, como sejam, a economia liberal de mercado e a democracia política, postos em causa pelo tríptico declínio relativo dos EUA, ascensão da Ásia-Pacífico (com grande destaque para a China) e crise da União Europeia.

Em paralelo, o acordo é também uma nova etapa importante nas relações transatlânticas e na função dos Estados Unidos dentro destas. Depois da crise do Iraque e da “Grande Recessão”, o TTIP tem o papel fundamental de relançar a parceria transatlântica, a níveis económicos mas também políticos e estratégicos. Nas palavras da antiga Secretária de Estado americana, Hillary Clinton, o TTIP será uma “NATO económica”, expressando de forma clara a vasta dimensão que o acordo tem e a sua importância para os dirigentes europeus e americanos. Basta o exercício simples de observar os acontecimentos em curso na Ucrânia, reveladores da crescente assertividade da política externa da Rússia, para entender a grande relevância desta dimensão.

As implicações geopolíticas da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento são particularmente verificáveis no espaço português. Em primeiro lugar, é importante analisar a importância que o TTIP tem para Portugal num contexto europeu. Devido à mudança dos modelos de integração europeia e ao “momento unipolar” alemão, uma maior aproximação ao continente americano é essencial para que haja uma nova deslocação da Europa para o Atlântico, invertendo a crescente continentalização e deriva a Leste da UE. O TTIP vem assim reforçar a complementaridade da componente continental e atlântica. Em segundo lugar, sendo Portugal uma potência atlântica e inserida na Europa Ocidental, a sua posição estratégica será reforçada, beneficiando a relação que o país mantém com os Estados Unidos, quer num plano bilateral, provavelmente materializada no aumento das trocas comerciais entre os dois países, quer num plano multilateral, sobretudo no campo da defesa, institucionalizado dentro da NATO. Em ambos os casos é expectável que o TTIP possa ter indirectamente uma incidência positiva na questão da base das Lajes.

Por todas estas razões, talvez David Cameron devesse antes ter dito no encontro na Irlanda do Norte que o TTIP é o maior acordo geopolítico desde a criação da Aliança Atlântica

Universidade Nova e IPRI-UNL

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