Novos e velhos factores de incerteza

A vitória de David Cameron, que nenhuma sondagem previa, não é caso único na Europa.

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1. Por mais que se queira, é quase impossível escrever alguma coisa de novo sobre a crise grega que se alastra há três meses, desde que Alexis Tsipras constituiu o seu governo. Atenas está sem dinheiro? Parece que sim. Mas lá arranja algum, nem que seja do próprio FMI, para pagar o que deve ao FMI.

O discurso varia entre duas mensagens, sem que nenhuma consiga sobrepor-se à outra: queremos um acordo; mantemos as nossas linhas vermelhas. A questão fundamental é saber se o Syriza quer ou não quer o euro. Do outro lado, a mensagem não é menos confusa. Berlim quer ou não quer que a Grécia se mantenha no euro? Há dias em que parece que sim e outros em que parece que não. É um diálogo de surdos. Fica a sensação de que este confronto não pode durar muito mais. Ou pode?

As eleições britânicas acrescentaram mais um factor de incerteza sobre o futuro europeu. Também aqui é preciso tentar entender o que vai exactamente na cabeça de David Cameron, agora legitimado perante o eleitorado e perante o seu próprio partido, graças à sua extraordinária vitória eleitoral. O primeiro-ministro diz que provavelmente vai antecipar o referendo para 2016, o que é uma boa ideia: reduz o tempo de incerteza e aproveita a força resultante da sua vitória para travar uma batalha que ele sabe que tem enormes riscos. Falta saber também o que vai na cabeça da chanceler alemã, que não quer o Reino Unido fora da Europa e que, há já alguns meses, chegou a admitir uma revisão cirúrgica dos tratados, da qual apenas desistiu porque percebeu que a grande maioria dos seus parceiros não quer nem ouvir falar nisso.

A vitória de David Cameron, que nenhuma sondagem previa, não é caso único na Europa. Alguns dias depois, as eleições presidenciais na Polónia mostraram novo fracasso das sondagens. O candidato do partido ultraconservador e eurocéptico dos gémeos Kaczynski teve mais votos na primeira volta do que o actual Presidente, próximo do Governo de centro-direita europeu e moderado, cuja única dúvida seria ganhar logo à primeira ou ter de disputar a segunda. Os casos não são comparáveis, a não ser na forma como põem em xeque os institutos que medem a opinião. A provável explicação é que a realidade política mudou (e continua a mudar), fragmentando o eleitorado e abrindo espaço a forças políticas marginais que não pesavam nos modelos utilizados pelas empresas de sondagem.

2. Também não vale a pena acusar o sistema eleitoral britânico de desvirtuar a realidade política, como se tem feito por cá. Os liberais-democratas tiveram mais votos do que os escoceses (o que é natural, porque têm representatividade nacional) e menos lugares no Parlamento. Nigel Farage foi o terceiro partido (12 por cento dos votos) e só conseguiu eleger dois deputados. O sistema funcionava bem com dois partidos hegemónicos que garantiam facilmente a estabilidade governativa. As coisas começaram a mudar nas eleições de 2010 (a ausência de uma maioria obrigou os tories a fazer um governo de coligação com os liberais). Há, no entanto, um aspecto saudável no sistema britânico, que é a responsabilidade directa de cada eleito perante o seu círculo eleitoral uninominal. Ou convence o pequeno universo de votantes (por vezes, não tão pequeno, mas igualmente exigente) ou não ganha o seu lugar, independentemente de ser “amigo” do líder. O Parlamento é levado tão a sério que nenhum dirigente, por mais importante que seja, terá lugar num governo se não tiver sido eleito para Westminster. A proximidade do eleitorado é útil para garantir a responsabilidade política. Tem defeitos de representação? Tem mas já tinha antes.

3. Podemos dizer que o referendo na Escócia alterou profundamente a paisagem política britânica. O Labour era o partido mais votado. Obteve, em 2010, 41 deputados para uma meia dúzia de membros o Partido Nacional Escocês. Agora, e graças ao referendo perdido pelos independentistas, a situação inverteu-se. A principal razão para o desaire do Labour é, no entanto, a sua falta de credibilidade para dirigir a economia do país. É um problema recorrente do partido nas últimas décadas, que Blair resolveu com a “terceira via”, que viu como a resposta do centro-esquerda à globalização dos mercados e ao seu profundo impacte social nas democracias ocidentais. Ed Miliband conquistou a liderança contra os herdeiros de Blair, prometendo virar o partido à esquerda. Ficou sem discurso para a classe média, que não se safou assim tão mal da austeridade (a crise deles não teve nada a ver com a nossa, como é bom de ver). A confusão instalou-se no partido, com vários candidatos à liderança das mais variadas facções a entrarem e a saírem de cena. O problema é de liderança mas é, em primeiro lugar, de reflexão sobre uma estratégia que se revelou como completamente errada. E não é apenas britânico. Afecta a maior parte dos partidos de centro-esquerda europeus e corresponde ao seu relativo fracasso para encontrar um espaço político novo, que diga alguma coisa aos eleitores. A “terceira via” não foi um fracasso como agora está na moda dizer, confundido Blair amigo de Bush com a sua agenda doméstica e europeia (convém não esquecer que conquistou a sua terceira maioria absoluta em 2005, dois anos depois do Iraque e quatro do Afeganistão). Falhou numa coisa: acreditou que a aposta na educação e na formação das pessoas iria contrariar a crescente desigualdade social, provocada pela ideologia neoliberal, com a sua “trikle-down economy”, segundo a qual os mais ricos, incluindo empresários e investidores, precisavam das melhores condições possíveis para ficarem ainda mais ricos (incluindo impostos baixos), que alguma coisa acabaria por sobrar para todos e, em particular, os mais pobres. Estatisticamente, a tese pode ser verdadeira. Na vida real, aumenta brutalmente as desigualdades, o que é um problema para as democracias. O Labour tem de partir daqui em vez de insistir em voltar a um mundo que já não existe. Convém, além disso, que se entenda rapidamente para poder enfrentar o referendo da Europa com os argumentos certos. Nos próximos tempos o debate vai ser esse e não admite meias-tintas. Mesmo sabendo-se que não quer sair da Europa, Cameron elevou a parada. Convém que perceba até que ponto pode ir na restituição das competências para Westminster, porque do lado de cá da Mancha também há linhas vermelhas e, tal como ele, os seus homólogos, que se têm mostrado bastante cordatos, também têm de pensar nos seus eleitores e nas forças extremistas e nacionalistas que os atingem a quase todos.

4. Quando, para atacar o despesismo do Labour, Cameron exibiu durante a campanha a nota deixada pelo secretário do ministério do Tesouro Liam Byrne dizendo apenas “não há mais dinheiro”, só contou uma parte da história. Em Outubro de 2008, quando a queda do Lehman Brothers lançou o pânico nos mercados, ninguém sabia exactamente o que era preciso fazer, nem sequer Hank Paulson, o secretário do Tesouro americano. Abreviando a história, no Reino Unido a banca ameaçava ruir, com os levantamentos dos depósitos e a falta de liquidez de bancos tão gigantescos como o RBS ou o Lloyds. Gordon Brown não se podia dar ao luxo de esperar para ver, como fez Bush com a queda do Lehman. Hoje é fácil de dizer que podia ter sido de outra maneira. Pois é. Por exemplo, a regulação dos mercados financeiros devia ter sido muito mais apertada mas não foi, por decisão dos mesmos que agora criticam o que os governos fizeram na altura. É bom ter sempre na memória a frase célebre de Alan Greenspan, até então o homem mais poderoso do sistema financeiro mundial, perante o Congresso a que teve de prestar contas, que cito de memória: “Confesso que me enganei quando acreditei que os mercados agiam de forma racional”.

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