Sunt lacrimae rerum

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Há lágrimas nas coisas. “Sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt” (Virgílio, Eneida, Livro I, verso 459). Podemos traduzir quase à letra: “Há lágrimas nas coisas e tocam a alma dos mortais.” Mas há dezenas de propostas de tradução ou interpretação. Eneias contempla, num templo de Cartago, imagens da Guerra de Tróia, uma tragédia histórica. Nós contemplamos as fotografias de uma tragédia natural e humana — no Nepal.

O Nepal tornou-se um país de homelesses, escreve um jornalista nepalês. O sismo de 25 de Abril não fez apenas 8 mil mortos, 20 mil feridos e centenas de milhares de desalojados: “Seiscentas mil casas destruídas, 22 mil escolas em ruínas, edifícios governamentais em escombros. É como se tivessem recebido um tapete de bombas. E tudo isto antes do segundo sismo, na terça-feira, que acabou por arrasar o que ainda estava de pé.”

Nem os deuses resistiram. Nos templos vêem-se por terra estátuas e imagens. O Nepal tem uma história própria, fruto da mistura de culturas e religiões — hindu, budista e tântrica, diz a UNESCO no seu site. “Katmandu, com a sua herança arquitectónica única, os seus palácios, templos e pátios interiores, inspirou escritores, artistas e poetas, estrangeiros ou nepaleses.” Parte do património cultural ficou reduzida a pó.

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Lak Bahadur Tamany toma conta da sua filha de três anos nesta fotografia de quarta--feira, um dia depois do segundo terramoto no Nepal Roberto Schmidt/AFP

Foi um país fechado aos estrangeiros durante 128 anos. Reabriu as portas em 1951. Tornou-se o eldorado dos alpinistas e, depois, dos hippies. O turismo é vital para um dos países mais pobres do mundo. Mas tem faces ocultas. Dezenas de milhares de adolescentes trabalham como prostitutas nos hotéis. Lugares de desportos de montanha são hoje depósitos de lixo.

Encurralado ente dois gigantes, a Índia e a China, o Nepal está instalado sobre um abismo — a sul, a placa tectónica indiana, a norte, a placa tectónica da Eurásia. Foi a colisão entre estes dois blocos que, há 50 milhões de anos, fez nascer os Himalaias.

Entre 1996 e 2006, o Nepal viveu uma feroz guerra civil entre uma guerrilha maoísta (inspirada no Sendero Luminoso peruano e não em Mao) e uma brutal repressão militar e policial: 13 mil mortos. Em Junho de 2001, o rei Birendra e quase toda a família real foram massacrados pelo príncipe herdeiro. Sucedeu-lhe o irmão Gyanendra, despótico e suspeito de ter inspirado o regicídio. O Nepal insurgiu-se e, em 2006, o rei afastou-se e a guerrilha abandonou a violência. Em 2008, foi instaurada uma república federal. Os nepaleses julgavam-se em paz. A Natureza declarou-lhes guerra.

Ninguém chora nesta fotografia. Tal como na Eneida, as lágrimas estão gravadas na própria imagem.

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