O vestido pós-11 de Setembro

1. Quatorze anos depois, voltei a pôr o meu primeiro vestido pós-11 de Setembro no aeroporto de Istambul, entre vir de Lisboa e voar para o Iraque. Isso aconteceu na quarta-feira, e vesti-o todos os dias até hoje, sábado. Aliás, de ontem para hoje nem cheguei a tirá-lo, dormi com ele no chão de uma sala de mulheres peshmergas, combatentes curdas que se têm revezado na linha da frente contra o “Estado Islâmico”. O resultado disso foi um rasgão de lado, tão esgarçado está o tecido, quatorze anos depois. É, no mínimo, o que se pode dizer desta parte do mundo quatorze anos depois, e pode bastar um vestido para alguém perder a cabeça. Foi por isso que o meu tradutor curdo ficou aliviado quando lhe mostrei o rasgão, dando o vestido por acabado.

2. O meu tradutor não me disse logo de início o que achava do vestido. Nem sequer o que o irmão, nosso condutor, achou ao avistar-me no parque de estacionamento do aeroporto de Suleymaniah, enquanto ele me procurava nas chegadas. Eu não sabia que ele lá estaria à espera, muito menos que haveria um irmão. Quando ele, porque não me localizava, ligou ao irmão que continuava lá fora, o irmão respondeu-lhe que, assim com as minhas características, só vira uma iraniana. 

3. Claro que a iraniana era eu, mas só percebi isso muitas horas e quilómetros depois de aterrar, ao cair da noite em Erbil, a capital do Curdistão Iraquiano. O meu tradutor acabava de, finalmente, receber um telefonema confirmando que um comandante peshmerga nos receberia na linha da frente na manhã seguinte. Erbil fica apenas a 80 quilómetros de Mossul, a cidade que o “Estado Islâmico” tomou em Junho de 2014, deslocando o mapa do Médio Oriente, e o foco do mundo, de um momento para o outro. Ao longo das centenas de quilómetros de linha da frente entre o Curdistão e o “Estado Islâmico”, a zona entre Erbil e Mossul é a mais simbólica. Exército iraquiano, milícias pró-iranianas, coligação internacional e peshmergas curdos estão a tentar cozinhar a retomada conjunta de Mossul. Uma aliança de inimigos, impensável antes de o “Estado Islâmico” ter batido recordes de crueldade desde que há Internet. Mas até que uma aliança aconteça, os curdos é que seguram a sua linha da frente no terreno, tentando que as trincheiras se mantenham mais perto de Mossul que de Erbil. E há um mês a capital curda tremeu quando enviados do “Estado Islâmico” detonaram um carro-bomba junto ao Consulado Americano, em pleno bairro cristão. Um sinal de como o Califado conseguia matar bem além da linha da frente. 

4. O comandante curdo que nos ia receber agora estava num ponto dessa linha, perto de Nimrud, a mítica cidade da Assíria cuja destruição o “Estado Islâmico” recentemente filmou ao melhor estilo Rambo. Tínhamos de lá chegar às dez da manhã, anunciou-me o meu tradutor. E a sorrir, como bom oriental, perguntou então se eu só tinha aquele vestido.

5. Por acaso sim, porque o resto da roupa, que já não era muita, ficara em Suleymaniah. Mas, argumentei, eu comprara aquele vestido no Paquistão uma semana depois do 11 de Setembro, era um vestido igual ao de milhões de muçulmanas, que me cobria até aos joelhos, por cima de calças devidamente largas. Pois, mas o problema era justamente ser um vestido paquistanês, explicou ele. Que me cobrisse mais ou menos não era tão importante, mas ser paquistanês, sim, mais do que importante, perigoso. Paquistanês, iraniano, afegão, o meu vestido parecia qualquer uma destas coisas, talvez árabe, em última análise marroquino, e qualquer uma destas coisas podia inspirar mais desconfiança do que eu ser uma ocidental descoberta. Isto, do ponto de vista curdo, que frequentemente prefere Bush a Obama, porque Bush acabou com Saddam e ninguém é um monstro maior do que Saddam do ponto de vista curdo, pelo menos até ao aparecimento do “Estado Islâmico”. E, para reforçar o seu ponto, o meu tradutor contou-me o que o irmão lhe contara no aeroporto. Pior do que paquistanesa (do ponto de vista curdo): eu podia ser iraniana. Portanto, que tal comprar algo ali para vestir?, perguntou, apontando as lojas ainda abertas.

6. Eis como o puzzle desta parte do mundo só ficou mais complexo e sectário nos últimos quatorze anos. A “guerra contra o terror” com que Bush respondeu ao 11 de Setembro multiplicou os demónios, e um dos exemplos é a latente guerra civil no Iraque (curdos sunitas, árabes sunitas, árabes xiitas, e as suas diversas áreas de influência externa), que só não reemerge porque há a emergência do “Estado Islâmico”.

7. Corremos as montras femininas até o meu tradutor admitir que, de facto, nada daquilo servia, variava entre roupa de parturiente e fancaria flamejante. OK, concedeu, grave, se não havia nada a fazer eu iria com o meu vestido. 

8. Prossegui as sondagens: o recepcionista do hotel onde dormi alvitrou que eu vinha de Marrocos, e a recepcionista concordou, mas uma cliente sentada no átrio contrapôs em voz alta: Paquistão! O meu tradutor sorriu. Entre as peshmergas que me alojaram na noite seguinte, Índia, Marrocos e Afeganistão ficaram empatados no segundo lugar com um voto. Vitória para o Paquistão. 

9. Entretanto, fomos à Linha da Frente, onde o vestido não assumiu nenhum papel nos acontecimentos: nem nos checkpoints nem na linha da frente alguém me tomou por paquistanesa, iraniana ou marroquina. Mas também não passou despercebido. Em plena trincheira, o meu tradutor decifrou os sussurros, e teve de rir para dentro. Porque junto aos sacos de areia de onde fazem mira contra o “Estado Islâmico”, a menos de dois quilómetros, os soldados discutiam de onde diabo vinha eu. E certamente porque, por alguns dias, um terramoto ultrapassou o Califado nas notícias, a teoria militar era esta: eu vinha do Nepal.

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