União Monetária: torcer antes que quebre?

A agenda europeia de fundo continua a ser tão urgente como antes, porque as brechas que se abriram em 2012 persistem.

Mais de seis anos depois da mais grave crise económica e financeira da União Europeia (UE), há que reconhecer que a Zona Euro (ZE) mantém, no essencial, as fragilidades que quase puseram a sua sobrevivência em risco. Enquanto a actividade económica vai dando sinais de retoma – mesmo que preocupantemente lentos –, parece estar a perder-se alguma da dinâmica reformista que a crise impôs a uma UE que chegou a correr riscos de desagregação total. Não me refiro, obviamente, às chamadas "reformas estruturais" que têm sido impostas a alguns Estados-membros, mas sim às reformas da própria União Económica e Monetária (UEM), essenciais para colmatar as deficiências da sua construção.

Olhando para trás, torna-se evidente que a introspeção forçada e o debate sobre o futuro da UEM, desenvolvidos em plena tormenta da ZE, abrandaram significativamente desde que Mario Draghi anunciou, nesse Verão de 2012, que o BCE faria "tudo o que fosse necessário" para salvar o Euro. O anúncio e as decisões que se lhe seguiram esvaziaram o essencial da especulação sobre a dívida soberana de tal forma que o estado de emergência passou de "vermelho" a "amarelo" tornando infrutíferas quaisquer tentativas de prosseguir uma reflexão que estava então bem avançada - como testemunham o chamado "relatório Van Rompuy", o "blueprint" da Comissão Europeia (CE) sobre o futuro da UEM e vários relatórios e resoluções do Parlamento Europeu (PE).

O que então parecia estar na forja era um consenso alargado sobre as condições de sobrevivência, a prazo, da moeda única. Chegaram a fazer-se compromissos e a estabelecer calendários sobre passos tão essenciais como a criação de um orçamento reforçado da UE (ou mesmo específico para a ZE), financiado por recursos próprios (entre os quais uma taxa sobre transações financeiras) e com um tesouro europeu, suscetível de promover políticas de convergência, absorver choques económicos gerais ou específicos e apoiar verdadeiras reformas estruturais.

Dessa agenda reformista constava ainda um fundo europeu de amortização da dívida pública (ou "fundo de redenção"), considerado essencial para resolver os gravíssimos problemas de reembolso da dívida pública de vários países (não só da Grécia, mas também de Portugal). Um fundo solicitado pelo PE em 2012, defendido no blueprint da CE e objecto de estudos (até na Alemanha) por peritos de renome.

Em 2014, na sequência de uma investigação profunda sobre o funcionamento da troika que pôs a nu a total ausência de controlo democrático sobre esta estrutura ad-hoc e os graves erros técnicos contidos em diversas das suas imposições, o PE culminou um longo processo negocial com uma posição de defesa oficial do fim dessa troika que, na prática, continua hoje em funções – passando a chamar-se, para grego ver – “grupo de Bruxelas.

Uma das raras concretizações desta reflexão foi a União Bancária e a importante legislação sobre a regulamentação e supervisão do setor financeiro. Mas, mesmo aí, é difícil – até num PE que foi especialmente ativo enquanto co-legislador no dossier – tornar audível que falta cumprir a terceira vertente do projeto: a criação de uma garantia comum para os depósitos bancários, em substituição de garantias nacionais cuja solidez depende da situação orçamental de cada Estado. Também o processo de constituição pelos Estados de uma linha de crédito que sirva de suporte ao Fundo de Resolução dos bancos falidos ou em risco de falir, dando-lhe robustez desde início, segue preocupantemente lento.

Quanto mais crescem as dificuldades políticas desta agenda de fundo, que continua a ser notoriamente reivindicada pelos socialistas, mais relevante se torna o detalhe de uma agenda de curto prazo compatível com a visão de longo prazo. Aí sim, há que reconhecer progressos, ainda que à custa de muita persistência.

Um deles é a utilização pela CE, nos últimos meses, da margem de flexibilidade que já tinha sido introduzida pelos socialistas nas regras de governação do euro durante a revisão do PEC. Foi também a pressão socialista que fez com que a UE tivesse colocado o relançamento do investimento como prioridade, por via do primeiro e insuficiente passo que constitui a criação do Fundo Juncker (ou EFSI) enquanto instrumento próprio.

A agenda imediata inclui também temas como a governação por regras comunitárias – e não pelos governos – do Mecanismo de Estabilidade Europeu (ESM), a constituição da referida garantia comum dos depósitos, a convergência dos sistemas fiscais nacionais (com uma estratégia comum de combate à fraude e evasão fiscal) e, definitivamente, um debate sério sobre o conteúdo das chamadas "reformas estruturais" a negociar (em vez de impor) e a fazer acompanhar de incentivos complementares às atuais sanções.

Repita-se que a agenda europeia de fundo continua a ser tão urgente como antes porque as brechas que se tornaram óbvias em 2012 persistem, embora disfarçadas sob capas de sinais de saída do fundo da depressão ou de uma baixa generalizada dos juros associada aos excessos de liquidez. Sendo ainda que a situação da Grécia, longe de estar resolvida, pode bem vir a ser o terramoto capaz de reabrir a perceção lacunar dos alicerces. As alterações só ocorrerão à medida que um número crescente de governos oriundos da esquerda europeísta e reformadora continue a pressionar a nível do Conselho de Ministros da UE e do Conselho Europeu.

A nível nacional, urge fazer uma leitura inteligente da situação num momento em que, mais do que uma rotura de riscos imponderáveis (a Grécia foi exceção pelo peso das circunstâncias), importa ir abrindo progressivamente margens de manobra e aproveitá-las em favor dos objetivos nacionais.

É precisamente isso que se procura fazer no documento "Uma Década para Portugal", que se insere aliás numa lógica próxima da que foi seguida num estudo sobre o ajustamento global da UE em 2013 e 2014 – por encomenda do Grupo dos Socialistas Europeus a três Universidades – que prova, com recurso aos modelos econométricos da CE, que um ajustamento orçamental atingindo as mesmas metas orçamentais tinha sido possível com melhor calibração e sem o devastador impacto sobre o crescimento e emprego (http://www.iags-project.org/documents/iags_report2014.pdf).

Assim se tornou nuclear a demonstração de que é possível materializar a agenda de forma distinta. Em democracia, tal só se realizará com base num voto que inverta um rumo dominante que releva, sobretudo, de uma ideologia disfarçada de tecnicidade. É tempo de forçar a mudança!

Elisa Ferreira, eurodeputada eleita pelo PS, coordenadora dos membros dos Socialistas e Democratas europeus (S&D) na comissão dos assuntos económicos e monetários do Parlamento Europeu (ECON) e co-relatora da comissão especial encarregue de averigar as práticas fiscais agressivas de alguns países (TAXE)

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