Como aniquilar a esperança

Tenho memória de os meus pais gritarem “fascismo nunca mais!” no 25 de Abril de 1974. Assisti à entrada de Portugal na União Europeia e ainda hoje, apesar dos reveses, sou europeísta. Emocionei-me com a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Ao mesmo tempo fui assistindo ao aparente melhoramento dos padrões de vida dos portugueses.

A política sempre me interessou, mas não a partir da sua dimensão institucional ou partidária, nem de divisões, tantas vezes artificiais, como esquerda e direita. Talvez por isso muita gente da minha geração tenha sido apelidada de apolítica. Nada mais errado. O que aconteceu foi que a política foi encenando a separação da vida quotidiana. A minha politização, e de outros, deu-se em contextos informais – na música, cultura ou ciências sociais, por exemplo. Mas é verdade que, com o tempo, me fui desiludindo, porque a política se foi esvaziando.

Durante décadas parecia existir consenso sobre o rumo a seguir. Ou pelo menos não nos interrogávamos se existiriam outras opções. Os traumas do fascismo e do comunismo ainda estavam presentes. E acreditava-se que o crescimento económico era ilimitado, os recursos infinitos e o consumo inesgotável. E se surgisse algum dilema, aí estaria a tecnologia para nos conservar.

Tudo isso foi radicalmente posto em causa nos últimos anos. Pensar-se-ia que seria altura para voltarmos à política a sério, de forma construtiva e emancipada, e deixarmos a politiquice. Mas não.

A crise grassa. As pessoas agonizam. O mal-estar é evidente. Mas a política continua a ser reduzida à mera administração social ou às discussões sobre a moralidade deste ou daquele político. Apenas se debatem as oscilações ínfimas do PIB, o défice, os índices, as metas. Não são pormenores, como é evidente, mas é como se discutíssemos apenas os reajustamentos do caminho que estamos a seguir e não fosse possível interrogarmos o caminho em si.

Escolhemos, de quatro em quatro anos, quem administra a vida social e económica e cuida do funcionamento do sistema. Mas e se o problema estiver na erosão do próprio sistema, da democracia, da forma como somos representados? Vivemos num momento liminar em que ninguém parece ter soluções para o desacerto. E no entanto esse debate não existe. E isso nunca foi tão visível. Pior: quem se atreve a lança-lo é de imediato silenciado.

Antes mesmo que a esperança possa emergir, há que adormecê-la, parece ser a palavra de ordem. Só isso explica que, da Grécia à candidatura presidencial de Sampaio da Nóvoa, para dar dois exemplos recentes com visibilidade, qualquer tipo de posicionamento que questione os modelos hegemónicos é de imediato posto em causa. Intoxica-se a opinião pública ou criam-se bloqueios.

E a táctica é quase sempre a mesma: propagar o medo, acenando com palavras como populismo, radicalismo ou utopia, como se essa estratégia não fosse ela sim populista, como se as políticas de austeridade não fossem bastante radicais e a crença numa sociedade de crescimento infinito, incapaz de garantir uma redistribuição justa, não fosse a maior das utopias que se tem vindo a transformar em pesadelo.

Isola-se um elemento do que é nomeado para se desacreditar o todo. Esvaziam-se críticas sistémicas com o argumento de que se não forem traduzidas em propostas viáveis nem vale a pena iniciar a discussão. Dessa forma querem fazer-nos acreditar que a única solução é aceitar o que temos contra todas as evidências.

Os que detêm o poder exigem aos críticos as soluções que eles próprios não conseguem produzir, dessa forma criando a ideia de que as suas propostas são, pelo menos, as menos más, e que o caminho praticado é o único realizável. Bloqueia-se o debate no momento em que ele pode convergir para todos. Dizem-nos que mais vale deixarmo-nos de fantasias, continuando a impor-nos a sua cruel fantasia.

Muitas das propostas da Grécia, por exemplo, afiguram-se modestas e realizáveis. Mas o que nos dizem é que são radicais, quando algumas delas caberiam em qualquer agenda social-democrata há alguns tempos. Não se trata de fazer a apologia acrítica dos movimentos da Grécia, mas constatar que existe uma distorção contínua. A realidade é que, pelo menos esta Europa, não quer que a Grécia se reerga porque se isso ocorresse iria colocar em causa os seus actuais desígnios. Já não é chantagem. É mais do que isso. É expor o que acontecerá a quem ousar outros itinerários.

Os guardiões do pensamento dominante sabem que todos temos a capacidade de ter ideias. Mas também percebem que a maior parte do tempo precisamos de encorajamento e de acreditar que é possível. Percebem que sem esperança não há política a sério. É por isso que não desejam que testemunhemos uma possibilidade ainda não percebida. E assim, umas vezes subtilmente, outras nem tanto, lá vão tentando desacreditar as bolsas de esperança que vão surgindo.

Mas se a esperança é a representação de um desejo de mudança, já presente no subconsciente individual ou colectivo, se é a manifestação de uma verdade que já existe mas ainda não ganhou expressão definida, é possível que neste momento esteja bastante abalada, mas não aniquilada.

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