Nas perturbações mentais “a família é o doente oculto”

Nova federação que representa familiares de utentes é apresentada este sábado e defende que os serviços de saúde devem ter “um mediador” a quem possam recorrer em situações de urgência. Criticam os tempos de espera para internamento.

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Daniel Rocha

Não havia qualquer antecedente familiar, a irmã de Joaquina Castelão era uma mulher normal que entrou para a faculdade, terminou a sua licenciatura em Geografia, foi colocada numa escola e começou a dar aulas. Só que por volta dos 26 anos “começou a ter comportamentos bizarros, fora da norma”. Ainda se atribuiu ao stress, mas depois começou a dizer que ouvia vozes, momentos em que dizia coisas estranhas, que “ia namorar com um príncipe”.

Levou dois anos até ser diagnosticada com esquizofrenia paranóide. A família ficou virada do avesso e teve de ser escolhida uma pessoa para a acompanhar. Para os pais, a carga emocional era demais, calhou-lhe a ela, a irmã. Joaquina Castelão é a presidente da FamiliarMente - Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas com Experiência de Doença Mental, que é apresentada oficialmente este sábado nos arredores de Lisboa, como a primeira estrutura nacional vocacionada para representar apenas os familiares dos utentes, a quem a responsável chama “os doentes ocultos”.

Joaquina Castelão foi “o elemento da família destacado para acompanhar a irmã”. Diz que conseguiu com muito esforço que aquela continuasse a dar aulas durante quase dez anos, depois dos primeiros sintomas, com vários internamentos pelo meio. Quando alguém é diagnosticado com uma perturbação psiquiátrica, é preciso que alguém da família vá às consultas, que convença a pessoa a aderir ao tratamento, porque em muitas doenças mentais “a pessoa não reconhece a doença e, por isso, não adere à terapêutica, o que agrava o seu estado à medida que os anos passam.”

Na doença mental “há a pessoa que tem o problema e a família que tem de o tentar resolver. A família também fica doente, vive e convive com a doença 24 horas por dia”. No seu caso, sentiu a "impotência" dos pais. "Alguém tinha de reagir de forma mais objectiva. Não há ninguém que não sinta angústia quando tem de haver internamentos compulsivos, são situações dilacerantes. Isto fica cá.”

“A família é importante no tratamento e é prioritário que se sente à mesa com os profissionais de saúde”, diz, em vez de ser encarada como “um mero recurso”. Joaquina Castelão assegura que as famílias sentem que têm falta de informação e que a federação recém-criada pretende pugnar por “uma educação psico-educativa” daquelas. Ou seja, é preciso que lhes seja explicado, de acordo com o seu grau cultural, o que é a doença mental em causa, como podem prevenir as crises.

E, sobretudo, é preciso que “as famílias tenham alguém a quem recorrer, às vezes em situação de urgência”. Joaquina Castelão chama-lhe “um mediador” ou “um técnico de referência”, alguém que deveria fazer a ponte entre eles, cuidadores informais, e os serviços de saúde e de apoio social, “dada a complexidade de exigências que surgem, por exemplo, nas situações demenciais”. “Algumas famílias têm o contacto do enfermeiro ou do médico, mas depende da boa-vontade, é uma prática informal que não está instituída pelos serviços. A maioria das famílias está desacompanhada” e “muitas vezes as famílias desmembram-se, culpam-se a si mesmas.”

Joaquina Castelão lembra que teve toda a sua vida marcada pelas sucessivas tentativas de suicídio da irmã, em que sempre chegaram a tempo de a salvar, desde a vez em que ingeriu ácido muriático, noutra uma dose gigantesca de ansiolíticos, da tentativa de afogamento na praia em que foi salva por um nadador-salvador, ao enforcamento em casa em que foi ela que a encontrou com o cordão do robe à volta do pescoço. “Também a família fica doente. E quem ajuda a família? Ninguém, eu tive de me ajudar a mim própria.”

E, na altura, na década de 1980/1990, sentiu mesmo necessidade de esconder a situação de colegas no meio profissional. “O estigma social era maior, sentia que se dissesse, as pessoas iam perguntar-se: será que ela também é esquizofrénica?”, diz, acrescentando que “compreendo as famílias que omitem ainda nos dias de hoje, continua ser um estigma, a família fica marcada.”

No seu caso, conta que conseguiu manter a irmã em ambiente familiar durante 20 anos mas que a doença atingiu um grau de incapacidade tal em que isso deixou de ser possível. “Chegava a ter quatro a cinco internamentos compulsivos por ano, deixou de ter capacidade de gerir a sua vida financeira, vendeu todo o recheio da casa aos vizinhos. Tive de ser eu a encontrar respostas na comunidade, numa instituição particular de solidariedade social”. A irmã tem 58 anos e está institucionalizada desde 2005.

Umas das prioridades da federação, cuja apresentação formal será feita este sábado em Idanha (arredores de Lisboa), é “a implementação plena dos cuidados continuados integrados de saúde mental”, que tardam em não sair do papel. Joaquina Castelão lembra que os primeiros projectos-pilotos estão previstos desde 2011. A rede de cuidados continuados integrados de saúde mental prevê, por exemplo, equipas de apoio domiciliário para tentar manter os doentes estabilizados o maior tempo possível e na comunidade, nota.

A responsável aponta também para a falta de respostas sociais, de actividades formativas e lúdicas – “a desocupação, o isolamento podem potenciar novos internamentos”. Uma das ideias da federação é criar um observatório que inventarie as respostas que existem na comunidade e as que seriam necessárias. A Familiarmente (cujo contacto de email é familiarmente.geral@outlook.pt) vai passar a estar representada no Conselho Nacional de Saúde Mental e já integra a Comissão Consultiva de Utentes e Cuidadores para a Saúde Mental.

A Familiarmente integra 11 associações de todo o país, de Condeixa, Braga, Barcelos, Guarda, Condeixa, várias da Grande Lisboa, Loulé. Joaquina Castelão nota que existe uma enorme assimetria de recursos humanos da saúde nesta área e que fora dos grandes centros de Lisboa, Porto e Coimbra a situação é mais difícil.

Quando começa a haver problemas, a primeira abordagem costuma ser o médico de família, mas para isso é preciso que o utente tenha um. Depois, “até ser referenciado para uma consulta de psiquiatria ainda tem de entrar para uma lista de espera, e cada hospital tem a sua lista, não há uma rede”.

Joaquina Leitão alerta ainda para o facto de, desde 2014, os doentes que precisam de internamento terem de ficar em lista de espera por falta de camas de psiquiatra nos hospitais. “Continua a haver doenças que exigem internamento, não há outra hipótese, há alturas em que é inconciliável tê-los em casa”. Antes de 2014, estas situações “tinham resposta imediata na comunidade”, em estruturas locais do sector social e particular, com quem os hospitais tinham protocolos. Por uma questão de poupança, estas respostas deixaram de existir. “Pode demorar meses um internamento em psiquiatria. É grave”. A situação é ainda mais difícil no caso das crianças e adolescentes em que apenas existem 20 camas no país todo e apenas em Lisboa e no Porto.

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