Mitos sobre as políticas de austeridade do Governo

Os sacrifícios exigidos aos portugueses foram desproporcionados e, em importante medida, inúteis.

Generalizou-se, no debate público, a ideia de que a redução do défice orçamental registada com a aplicação do programa de austeridade foi alcançada, sobretudo, à custa do aumento de impostos, não através da redução da despesa pública. Há até quem diga que o Governo deveria pedir desculpa aos portugueses por não ter reduzido a despesa pública como devia.

É lamentável que o debate sobre esta questão se faça com base em impressões e percepções e não com base na informação disponível. Os dados orçamentais revelam que a consolidação se fez por uma combinação de aumento da receita e de cortes na despesa, tendo sido maior a redução da despesa pública do que o aumento dos impostos. Convém analisar com mais rigor o que se passou nos três anos de governo com a Troika.

Entre 2010 e 2014, o défice orçamental ajustado reduziu-se em 9,7 mil milhões de euros, resul­tado da diminuição da despesa em 5,2 mil milhões de euros (54%) e do aumento da receita em 4,5 mil milhões (46%). Na medida em que a despesa com juros aumentou mais de 2,15 mil milhões de euros neste período, é fundamental analisar também o saldo orçamental primário. Este melhorou em 11,9 mil milhões de euros, fruto de uma redução de 7,4 mil milhões na despesa primária e de um aumento de 4,5 mil milhões na receita. A redução da despesa explica pois 62% da consolidação e o aumento de receita 38%, valores próximos da regra 2/3 pelo lado da despesa e 1/3 pelo lado da receita, como fixado no Memorando de Entendimento.

Na realidade, o ajustamento orçamental atravessou dois períodos muito distintos. No biénio 2011-2012, a despesa pública primária ajustada sofreu uma redução superior a 10 mil milhões de euros e a receita desceu cerca de 2,7 milhões de euros. No biénio 2013-2014, e fruto das decisões do Tribunal Constitucional, foi eliminada quase um terço da redução da despesa pública, cerca de 3 mil milhões de euros, enquanto a receita subiu de forma intensa, cerca de 6,2 milhões de euros. O facto de os cortes na despesa terem sido feitos sobretudo no primeiro biénio, associado ao facto de o aumento de impostos ter estado concentrado no segundo, pode ajudar a explicar a forma como o assunto é percebido, mas não pode alimentar o mito.

A orientação do executivo, explicitamente assumida nos primeiros meses de governação, de concentrar os cortes na despesa pública num único exercício orçamental, correspondeu, no fundo, à concretização material da estratégia de “austeridade expansio­nista”, isto é, da ideia de que uma forte retração orçamental produziria efeitos rápidos do lado da economia, levando a uma recuperação sustentada do cres­cimento do produto. Porém, o esforço de consolidação acabou por ter efeitos não esperados muito negativos, levando a uma contração da economia e a um crescimento de desemprego muito superior ao estimado.

Outro mito sobre a governação com a Troika é um propalado ímpeto reformista do Governo. Na análise das reformas estruturais previstas no Memorando de Entendimento, identificámos situações muito díspares. Considerando o conjunto das políticas de regulação e liberalização dos mercados, apenas nos casos do regime de arrendamento e da política do medicamento foram alcançados os resultados inicialmente previstos. No caso dos sectores da energia e dos transportes e da reorganização administrativa do território, os resultados ficaram muito aquém do acordado. Em contrapartida, nas matérias relativas à regulação do mercado de trabalho ou aos brutais cortes nas pensões de reforma, grande parte das decisões tomadas não constavam do Memorando de Entendimento.

Refira-se, por fim, que o Governo revelou grande eficácia em promover cortes na despesa com pouco ou nenhum critério (focando-se apenas nos maiores agregados) e, ao mesmo tempo, teve grande dificuldade em implementar políticas que implicassem reorganização da presença da administração pública no território. Neste campo, a ação do Governo não foi reformista, foi antes destrutiva do Estado, das suas instituições e da confiança dos cidadãos na administração pública.

Em última análise, a aplicação do programa de austeridade foi para o Governo uma oportunidade e uma alavanca. Uma oportunidade para implementar um conjunto de políticas que faziam parte da sua agenda ideológica. Uma alavanca porque foi utilizado para reforçar as capacidades políticas do executivo, que assim foi capaz de ultrapassar pontos de veto e a representação dos interesses organizados, concretizando políticas que pretendia implementar, mas que, sem esse constrangimento externo, não teriam sido concretizadas.

No fim, resta uma certeza, os sacrifícios exigidos aos portugueses foram desproporcionados e, em importante medida, inúteis.

Organizadores do livro Governar com a Troica. Políticas Públicas em Tempos de Austeridade, editado pela Almedina em Maio de 2015.

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