Um gangue de Coimbra com o coração em Itália

Inspirados pelas bandas sonoras do cinema italiano dos anos 60 e 70, os Mancines são uma criação de Pedro Renato talhada para as vozes de Raquel Ralha e Toni Fortuna. Soam ainda melhor do que se possa imaginar.

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Eden’s Inferno, primeiro álbum do grupo de Coimbra, inspira-se nessa magnífica trupe para criar um objecto de sublime elegância DR

Na fotografia de grupo das primordiais referências do universo cançonetista de Pedro Renato, compositor principal dos Belle Chase Hotel e do Azembla’s Quartet, sempre tinha sido fácil vislumbrar compositores de bandas sonoras como John Barry ou Nino Rota esboçando um sorriso para a câmara. Mas nunca como agora, com os Mancines, o músico tinha levado tão longe a sua obsessão com a música para o ecrã, ajustando o foco na direcção de uma época específica (anos 60 e 70) do cinema italiano. Daí que o retrato se refaça com rostos menos óbvios: pode continuar a falar-se de Rota, pode chegar-se a Ennio Morricone, mas entram agora em cena Bruno Nicolai, Piero Piccioni ou Piero Umiliani, autores que Renato cita com a facilidade de quem lhes conhece de cor as manhas musicais postas ao serviço do giallo, numa combinação irrepetível de mistério e erotismo. Todos fazedores de música com a temperatura de lençóis acabados de usar.

Eden’s Inferno, primeiro álbum do grupo de Coimbra, inspira-se nessa magnífica trupe para criar um objecto de sublime elegância, um conjunto de canções admirável, pautado pela fabricação dessa bolha temporal em que Pedro Renato é mestre – aqui ajudado por Gonçalo Rui e pelas vozes tão, tão a propósito de Raquel Ralha (WrayGunn) e Toni Fortuna (d3ö). Os Mancines, como facilmente se depreende, devem a designação a Henry Mancini. Um Mancini pedido de empréstimo pela sonoridade e pelo aspecto gráfico da palavra, e pela corruptela degenerada em Mancine, como piscadela de olho ao cinema – ler o nome do grupo como terminando em cine de Cinecittà. Um Mancini não tão íntimo assim, portanto –ainda que mais chegado a canções (Moon river) ou bandas sonoras (A Festa) devedoras de romantismo do que ao jazz de viela audível em Pantera Cor-de-Rosa ou Peter Gunn (de onde vinha  parte do nome dos WrayGunn).

“Apesar de toda essa riqueza das bandas sonoras italianas”, desvenda Renato, “houve um outro disco que me inspirou, um álbum da Ornella Vanoni com o Vinicius de Moraes chamado La Voglia, La Pazzia, L’Incoscienza, L’Allegria. Andava apaixonadíssimo por esse álbum e acabou por ser o catalisador para esta experiência.” Veio a calhar que Raquel Ralha, frequente companheira de Pedro Renato nestas andanças (estiveram juntos em Belle Chase Hotel, Azembla’s Quartet e Ellas), tivesse andado por sua conta a aprender italiano durante uns tempos, surgindo, assim, com títulos tão suculentos quanto Una notte indecisa, Solitudine ou Ninnananna. “O próprio ambiente que a língua italiana cria numa canção fazia sentido aqui”, argumenta a cantora. E, de facto, toda essa ressonância de um tempo passado e de um cenário de uma fantasia vaporosa, carregando amores tão dramáticos quanto ingénuos, se instala sem pedir licença.

Patton ou Fortuna
Há muito que Raquel havia escrito algumas letras para o disco dos Mancines, mas demorou até Pedro Renato dar uma limpeza à gaveta onde foi atafulhando largas dezenas de composições por não ter chegado ainda o momento certo: “Tinha composto algumas músicas há dez ou 15 anos e estavam guardadas, à espera de uma situação em que fizesse sentido reuni-las.” Faziam de tal forma parte da bagagem que Raquel Ralha se lembra de as ouvir em reuniões de amigos, em jantares, em diversas situações em que Pedro Renato acabava por partilhá-las. “Há imensas melodias deste disco que ele já tocava há imenso tempo enquanto conversava connosco”, lembra a cantora. Mas só quando Pedro se uniu a Gonçalo Rui, antigo produtor dos Belle Chase, para gravar e integrar o núcleo duro dos Mancines é que um disco começou a tomar forma.

Foram três anos de trabalho de estúdio, juntando canções, chamando os vocalistas para responder a necessidades específicas. Raquel estava praticamente desde o início, Toni Fortuna foi depois intimado a juntar-se a este universo que, à primeira vista, pode parecer menos óbvio para o cantor do rock pouco cerimonioso dos d3ö. Pedro Renato graceja dizendo que não estando Mike Patton disponível, falaram com Fortuna. O nome de Patton não cai do céu – lembremos o excelente álbum Mondo Cane, cujos ambientes são tangentes aos Mancines –, mas o de Toni também não vem por aí aos trambolhões. Não se lhe conhecendo um perfil de crooner, o homem que dera voz aos Tédio Boys tem uma amplitude de registos suficiente para despertar em si um Dean Martin ou um Perry Como adormecido. “Tenho facilidade em chegar com a voz a alguns universos que não apenas o puro e simples do rock”, confessa o cantor, sempre ao serviço da língua inglesa. E devolve o humor a Pedro Renato, dizendo que nem tudo se faz “só com duas cordas”. “Como vem do rock, o Toni diz que sou um bocadinho barroco nas composições, tenho a mania dos acordes diminutos e das sétimas”, ri-se o compositor.

O processo de trabalho seguido por Pedro Renato e Gonçalo Rui levou então a que os dois vocalistas trabalhassem os seus temas no desconhecimento do que o outro fazia – e do que faria também JP Simões, chamado a colocar a sua voz numa faixa em que para Pedro Renato não havia outro intérprete possível. Em parte, o critério para a escolha dos temas contemplara a capacidade de serem trabalhados assim, de forma avulsa. “Mas eram também as dez músicas que me eram mais queridas e sempre me tinham ficado atravessadas por não as ter gravado”, acrescenta Renato. “Tinha uma ânsia enorme de gravá-las o mais rápido possível para me ver livre delas.” Tanto assim que, após a morosa construção do disco, e testada a banda em palco (a estreia aconteceu no Conservatório de Música de Coimbra a 9 de Abril; segue-se o Teatro da Trindade, em Lisboa, a 25 de Junho), o segundo álbum começou já a ser registado.

Eden’s Inferno vai buscar o seu título aos “infernos pessoais” que atravessam as letras de Raquel e de Toni, numa coincidência de universos temáticos totalmente acidental, uma vez que avançaram na ignorância daquilo que o outro estava a gravar. Descidas aos infernos resguardadas, no entanto, por uma sonoridade pouco castigadora. Não é por acaso, aliás, que o nome Mancines conserva uma certa aura de gangue. De gangue familiar, talvez, bem à italiana, como se o inferno, por mais pessoal, fosse partilhado por todos e tomado como um sofrimento partilhado. Partilhado e diluído até que reste não mais do que um punhado de grandes canções, em que o inferno já não fede a enxofre e tem antes um odor vagamente adocicado.

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