Terra chama Elida

Tem uma voz cabo-verdiana vinda da rádio e começa agora a brilhar à distância com Ora Doci Ora Margos, que vem mostrar à Europa. Esta sexta-feira, dia 15, está como em casa: concerto em Corroios, na discoteca Glow.

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Elida Almeida no Matinho, onde cresceu e onde quis filmar um vídeo com João Botelho DR

Mais do que física, é mental a distância que é preciso atravessar para chegar do lugar de Matinho — uma montanha monumental, coberta de pó, que vista de certos ângulos podia ser o Arizona, só que com o Oceano Atlântico aos pés, cabras amarradas a árvores que já são só esqueletos e galinhas rondando belas casas para se viver no fim do mundo, assim sem telhado — até ao mundo incomparavelmente mais velho mas também incomparavelmente mais rico (Lisboa, Angoulême, Paris, Roterdão, Colónia, Sines, Antuérpia, por esta exacta ordem) que Elida Almeida vai frequentar até Agosto com o disco que mudou a vida dela (ou que, pelo menos, a fez chegar 4.800 quilómetros mais longe).

Nesta manhã nublada de Abril, a viagem faz-se ao contrário: são os jornalistas europeus que vão ter com ela à minúscula casa de pedra onde cresceu com a avó paterna, a uma hora a pé da sede do concelho de Santa Cruz, Pedra Badejo, na costa mais africana da ilha de Santiago (portanto: a uma hora a pé da escola e do mercado, só para mencionar dois bens de primeira necessidade) e a uma hora e meia de jipe da capital de Cabo Verde, Cidade da Praia, e onde um recém-aterrado João Botelho chegou bem mais cedo para filmar o videoclipe do próximo single de Ora Doci Ora Margos, Joana, e acaba de decidir que vai filmar outro logo a seguir (“porque esta canção é triste” e ele quer outra “de paixão”, Djam Nkrel Pa Mi, também composta integralmente por Elida).

Portanto: havemos de voltar a descer do tecto cinzento do mundo até ao verde dos bananais lá em baixo, e de fazer o jipe avançar na direcção dos campos de milho e de courgette em flor por uma rua de paralelos, atravessando pilhas de cachos de bananas, folhas de palmeira secas, bidões de plástico azul, e interrompendo a tarde das mulheres que cozinham em panelas a ferver na berma da estrada, dos homens que esperam de cócoras pelo almoço, e das crianças que como sempre estão por todo o lado. Mas antes há o nosso próprio almoço, que a avó de Elida acaba de preparar, à sua “humilde moda”, num pequeno fogão de dois bicos: arroz, peixe frito e peixe estufado, tudo servido em pratos de esmalte e comido ali mesmo nas traseiras, entre as galinhas e os três bisnetos que tal como Elida ali se hão-de criar, e de aprender a tratar do porco preto, a regatear os caldos Knorr que as vendedoras trazem à cabeça da Cidade da Praia e a pintar as unhas de vermelho bem brilhante para que nem tudo seja escuro (ela tem o seu truque para brilhar no vídeo e nas fotografias, um lenço fluorescentemente cor-de-rosa, e brilha mesmo).

Apesar do primeiro disco e de todas as viagens que se lhe sucederam, dentro e fora de Cabo Verde (esta sexta-feira, 15, actua em Corroios, na discoteca Glow, onde encontrará cabo-verdianos de segunda e terceira geração), ainda é aqui que Elida Almeida — 22 anos, um filho de cinco que contrariando todos os séculos que já tem em cima a tradição matriarcal cabo-verdiana vive com o pai, na ilha do Maio, onde a mãe dela ainda vende legumes — se sente em casa, com a avó, a irmã, os sobrinhos e a vizinha de 88 anos (22 dos quais “de sangue fervido no corpo”, ou seja de viuvez e respectiva abstinência sexual forçada) que nos conta do “tempo dos portugueses, o tempo em que o mundo era mundo”. A terra continua a chamá-la, ainda que se sinta cada vez mais em casa no palco, como nos diz dias depois na Cidade da Praia, enquanto devora uma tosta e pensa, os olhos de repente muito longe: “O palco! O palco! O palco é... Eu posso estar atrás do palco a tremer, mas quando subo esqueço-me simplesmente de tudo — do medo, dos problemas, das pessoas lá em baixo — e faço o que posso para que aquilo seja o meu momento comigo. Não vejo o que seria da minha vida hoje se não tivesse o palco.”

Menina da rádio
Não dura assim há tanto tempo, esta vida que Elida Almeida tem em vez da vida que imaginava que ia ter (e da outra a que subitamente, quando ficou grávida aos 16 anos e impedida de frequentar a escola no Maio, para onde se tinha mudado com a mãe bem depois da morte do pai, parecia não poder escapar, como conta em Joana): “Eu sempre sonhei que ia ser juíza ou procuradora, jurista... Mas quando terminei a escola secundária e chegou a altura de ir para a faculdade diziam que Cabo Verde estava cheio de pessoas formadas em Direito e que eu não ia conseguir nada. Acabei por fazer Comunicação Multimédia, que até se aproximava muito de Jornalismo, a minha segunda opção. Mas quando já ia no segundo ano assinei o contrato e comecei a preparar-me para o disco.”

Era uma história que vinha de trás, antes até do ano em que, por não poder frequentar a escola (“Concretamente na ilha do Maio nunca uma rapariga tinha ido às aulas grávida”), foi fazer um programa de rádio e se transformou na Daisy di Maio. Tinha finalmente digerido o choque da gravidez precoce (“Meu Deus! Quando me lembro do dia em que fiz o teste... Nunca mais quero ter um dia assim. A minha mãe ficou triste, desiludida, zangada, eu era uma menina muito esperta e de repente apareço grávida... Perdeu a esperança de me ver a estudar, a trabalhar, a casar”) e precisava “de fazer alguma coisa”. “Às vezes lia os noticiários e os tops; à noite, para embalar os corações, tinha o consultório sentimental. As pessoas ligavam, mandavam cartas, contavam que tinham recebido uma música de um admirador secreto... Acho que nessa altura o meu lado artístico já estava a começar a falar — eu improvisava coisas, investigava...”, recorda. De resto, desde pequena que era uma menina da rádio: “No Matinho até hoje não há televisão. Então eu ouvia rádio dia e noite, todo o tipo de música: do Brasil, da Europa, da América — e de Cabo Verde, logicamente. Quando fui para o Maio, comecei a cantar salmos com o grupo coral da igreja. As pessoas elogiavam-me muito, mas isso não me dizia nada. Foi só quando voltei para Santiago que um amigo que tinha uma guitarra me disse: ‘Elida, tens uma voz!’... Começou a ensinar-me as notas e a incentivar-me tanto que concorri ao Santa Cruz Canta, um concurso anual, que acabei por ganhar com a canção que veio a ser o meu primeiro single. As pessoas enlouqueceram quando eu apanhei a guitarra porque sou a primeira menina de Santa Cruz que aprendeu a tocar. Ou melhor, que está a aprender: continuo naquelas notas que o meu amigo me ensinou, ainda não evoluí muito.”

Alguns meses e mais um concurso depois, entrou no circuito habitual dos músicos cabo-verdianos: cantava em bares, restaurantes e hotéis quando foi descoberta pelo produtor de referência do país, Djô da Silva, que se interessou por ela. “Não queria acreditar: o produtor que toda a gente queria encontrar, que levou a Cesária [Évora] para França, ia olhar para mim? Mas noite atrás de noite ele estava lá a ouvir-me e acabámos por assinar contrato”, conta ao Ípsilon. E desde então, a vida mudou muito? “Mudou, mudou. Mas nada de revolucionário. Agora já me conhecem e me reconhecem na rua, falam comigo, querem tirar fotografias, pedir autógrafos, aconselhar-me — recebo montes de conselhos todos os dias, já tenho muitas mães e muitos pais por aí.”

A caminho
Ora Doci Ora Margos, o disco com que este ano se estreou — e que em França será relançado com três faixas bónus —, é o retrato fiel de Elida Almeida aqui e agora, mas também das circunstâncias tão cabo-verdianas que fizeram dela cantora e compositora: “Tudo o que acontece à minha volta eu transformo em música — e se ainda não transformei estou a caminho. Gosto de escrever sobre — ah, não te consigo explicar, era preciso que entendesses a língua...”. Como compositora, continua a olhar para cima, onde vê Manuel de Novas, B.Leza, Eugénio Tavares, e a sentir que é impossível chegar lá — o que não significa que não queira tentar: “É como se eles não cansassem, dá vontade de não inventar nada. Mas fartei-me disso e anunciei ao meu produtor que ia tentar compor. Acabei por só incluir no disco três temas que não são meus. Agora já não é normal passar um dia sem escrever.”

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Apesar do primeiro disco e de todas as viagens que se lhe sucederam, ainda é aqui que Elida Almeida se sente em casa, com a avó, a irmã, os sobrinhos e a vizinha de 88 anos DR

Como qualquer miúda de 22 anos, claro, tem os seus ídolos: chamam-se Katchás (“Adoro o som de guitarra que ele inventou”), Ildo Lobo (“A cada descoberta admiro-o mais”), Lura (“Não me canso de agradecer a existência dela”). Não fala em Cesária, mas toda a gente pergunta: “Tenho um respeito imenso por ela, e a sorte de trabalhar com quem esteve perto. É um orgulho enorme ser cantora como ela, cabo-verdiana como ela — canto uma morna no meu disco, gosto de dançar a coladeira... Mas a minha praia, tenho de ser verdadeira, é mesmo o batuque e o funaná.”

Terra chama Elida: apesar da digressão que a levará à Europa que Djô da Silva pôs aos pés de Cesária, ainda é de Cabo Verde que ela se sente. “A minha missão é conquistar o meu país, de Santo Antão à Brava, e só depois sair — se me deixarem, se me levarem.”

O Ípsilon viajou a convite da Tumbao

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