De pintora provinciana a mulher culta, a emancipação de Josefa de Óbidos

Dela se disse que pintava Meninos Jesus como se fossem bolos. Apesar da sua popularidade junto dos coleccionadores, não foi totalmente ilibada de preconceitos. A partir de hoje, no Museu Nacional de Arte Antiga, uma exposição tenta contrariar os estereótipos.

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Cristo Flagelado (1670), é de uma violência invulgarmente explícita, caso raro na obra de Josefa de Óbidos Daniel Rocha
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A assinatura da pintora sobre uma toalha Daniel Rocha
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Pormenor da montagem da exposição Daniel Rocha
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As naturezas-mortas Daniel Rocha
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O altar da Misericórdia de Penichesobre a crucificação, cujos painéis se encontravam dispersos e que são aqui reagrupados pela primeira vez desde o século XVIII Daniel Rocha
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A atenção ao detalhe é uma das marcas da pintora Daniel Rocha
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Santa Maria Madalena, 1650, uma obra do Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra Daniel Rocha
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Pormenor da montagem da exposição Daniel Rocha
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Pormenor da montagem da exposição Daniel Rocha
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Várias pinturas em que Josefa representa Santa Teresa Daniel Rocha
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Cristo Flagelado (1670) Daniel Rocha
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Muitas das pinturas de Josefa de Óbidos estão assinadas e datadas Daniel Rocha

Em 1949, o escritor Miguel Torga visitou a primeira exposição sobre Josefa de Óbidos realizada no Museu Nacional de Arte Antiga e não escondeu a sua decepção. “A senhora faz renda com os pincéis. Que falta de imaginação, que miséria de desenho, que geleia aquilo tudo!”, escreveu no seu Diário. “Enquanto um baboso se extasiava diante de um Menino Jesus rechonchudo, que parecia uma trouxa-de-ovos, raspei-me. Raça de portugueses que não dão um pintor que se aproveite!”

O desprezo de Torga não foi um caso isolado. Quase todos os críticos, exasperados com a aura de popularidade de que a pintora do século XVII gozava junto dos coleccionadores, que disputavam os quadros que surgiam nos leilões ou no mercado de antiguidades, concluíram tratar-se de uma artista menor, monótona, ingénua.

Sessenta e seis anos depois, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, regressa a Josefa de Óbidos, que continua a ser popular junto dos colecionadores – metade das obras na exposição Josefa de Óbidos e a Invenção do Barroco Português são empréstimos de privados – mas não foi totalmente ilibada de preconceitos.

“Confesso que quando comecei a estudar a Josefa achava que ela era uma pintora parvinha”, admite um dos comissários da exposição que acaba a 6 de Setembro, Joaquim Oliveira Caetano, conservador de pintura no MNAA.

As análises sobre a pintora têm incidido na sua suposta periferia geográfica – o facto de ter vivido e trabalhado na pequena vila de Óbidos, a norte de Lisboa – validando o retrato de uma artista rústica, provinciana. A sua educação conventual e devoção religiosa, plasmada na obra de Josefa, contribuíram para que se pensasse nela como uma espécie de freira que pintava. E apesar de ter pintado outros géneros, Josefa de Óbidos é conhecida sobretudo pelas suas naturezas-mortas, figurando doces conventuais e flores, o que por vezes tem servido como um atestado de menoridade; a natureza-morta é considerada menos exigente do ponto de vista pictórico, “sem necessidade de um conhecimento profundo do corpo humano”, nota a historiadora Filipa Lowndes Vicente no catálogo da exposição, e é mais facilmente associada a um universo feminino pela possibilidade de ser executada no interior do espaço doméstico.

Como os comissários Joaquim Oliveira Caetano, José Alberto Seabra Carvalho e Anísio Franco assumem, “afastar de Josefa o mito da artista provinciana, beata e prendada e apresentá-la como uma mulher emancipada e culta” é uma das intenções da exposição.

Pintora da doçura
Josefa “é uma pintora da doçura, não é uma pintora da emoção”, nota Joaquim Caetano, apontando para um Calvário que integra um retábulo que pertence à Misericórdia de Peniche e que desde o século XVIII se encontrava desmantelado. Maria Madalena está prostrada aos pés da cruz, cabisbaixa, desconsolada. “Está triste, mas é difícil que a gente chore com ela”, diz Joaquim Caetano. Os rostos nas suas pinturas raramente traduzem uma grande intensidade emocional.

São rostos ovalados, abonecados, com olhos enormes e bocas pequenas. É uma originalidade de Josefa, algo que distingue o barroco português, nacional, do espanhol.

“Há uma doçura na representação da Virgem e das figuras sagradas. Uma doçura divina que é bem diferente da produção pictórica barroca espanhola, que é muito mais realista”, diz Anísio Franco. Essa “doçura” está na origem de mal-entendidos, como o estereótipo de que Josefa pintava Meninos Jesus como se fossem bolos, reflectindo o gosto de uma clientela beata e ingénua – os conventos femininos.

Mas essa era uma estética consciente, deliberada. À época, muito por influência dos textos de Santa Teresa de Ávila, a doçura era um atributo do divino. “Não é por ser mulher que ela faz as coisas mais doces”, nota Anísio Franco. “Ela deseja que assim seja. As figuras divinas não são iguais às terrenas. Estão noutro nível – de transcendência. Não são pessoas como nós.”

O realismo é reservado para as coisas materiais – adereços, vestuário. O pintor Francisco de Zurbarán, contemporâneo de Josefa, conhecido como “o Caravaggio espanhol”, é uma influência notória. Duas das suas pinturas foram trazidas de Sevilha e do Museu do Prado e encontram-se na exposição, para facilitar as aproximações. “Josefa não é uma pintora da composição, da figuração espacial. É uma pintora da figura individual, como Zurbarán.” O colorido e a luminosidade dos tecidos é outra marca zurbaranesca, o seu naturalismo contrastando com os rostos quase caricaturais das figuras de Josefa. Bastaria decapitá-los para serem facilmente confundidos com Zurbarán.

Sem subtilezas
Mas se a linguagem de Josefa sempre se distinguiu pela sua amabilidade e suavidade, o que pensar do seu Cristo Flagelado, de uma violência invulgarmente explícita?

A pintura, de 1670, faz parte da colecção do Banco de Portugal. Um Cristo ensanguentado é representado de costas. Uma mão, no lado direito do quadro, puxa o manto que pousa sobre as costas de Cristo para tornar ainda mais visíveis os ferimentos e o sangue. No topo, por cima da figura, estão pintados dois panos, como cortinas abertas num teatro. O halo em volta da cabeça de Cristo reforça a ausência de subtilezas: é uma frase em latim, onde se lê: “Sobre as minhas costas lavram os pecadores”. Os ferimentos sangrentos nas costas de Cristo parecem reproduzir a lavra de um arado. “Não conheço outra imagem de Cristo de costas”, diz Joaquim Caetano.

Ao contrário da última grande exposição sobre Josefa de Óbidos – organizada por Vítor Serrão em 1991, no Palácio Nacional da Ajuda –, a do MNAA não segue uma ordem cronológica, mas temática. A primeira sala é “uma síntese” da exposição, sugere Anísio Franco. Nela está representada a fase de aprendizagem de Josefa, através de uma série de pinturas de pequeno formato; o confronto com o pai, Baltazar Gomes Figueira, também pintor, formado em Sevilha, onde Josefa nasceu, e em cuja oficina de pintura trabalhou – as pinturas dos dois são muitas vezes colocadas lado a lado, desafiando comparações, até porque frequentemente usam os mesmos modelos; e, por fim, a fase da emancipação profissional de Josefa – uma antecipação “do que ela vai ser”, como diz Anísio Franco – representada por um Menino Jesus pintado no final da sua vida.

Numa outra sala mostram-se as naturezas-mortas de Josefa lado a lado com as que foram produzidas pelo atelier do seu pai, onde também trabalhou. É difícil distinguir o que é de um e o que é de outro. “Eles estão misturados nesta sala e na minha cabeça”, confessa Joaquim Caetano. “É muito repetitiva a pintura de bodegón [termo espanhol para natureza-morta]. Os modelos são sempre os mesmos, há pequenas nuances.” Ele notou, por exemplo, que a borda de um pano numa natureza-morta atribuída a Josefa e pertencente ao MNAA tem características diferentes de outras naturezas-mortas da pintora. A sua suspeita é que, na verdade, tenha sido pintada pelo pai de Josefa. “Aprendi mais nesta semana de montagem do que numa vida de fotografias”, resume.

Ao contrário de Espanha, onde existiam muitos pintores de bodegones no século XVII, especializados em subgéneros, Baltazar Gomes Figueira e Josefa de Óbidos são os únicos profissionais portugueses a fazê-lo. “Os bodegones são feitos para uma clientela civil. É um sucesso comercial”, diz Anísio Franco. Josefa só assina naturezas-mortas depois da morte do pai, em 1674. Mas não se conhecem muitas. “O que a Josefa vai tentar fazer, a partir da sua emancipação, é ser uma grande pintora”, diz Anísio Franco. “A grande pintura não é a pintura de bodegones. Hoje preferimos muito mais ter uma natureza-morta em casa do que uma Virgem com o Menino ou um Cristo sangrento. Mas a grande pintura no século XVII é a que conta a história de Cristo e dos santos.”

Na sua fase madura e autónoma, com atelier próprio, Josefa foi uma prolífica pintora de retábulos, com encomendas que se estenderam para lá de Lisboa. Na sala final da exposição, que reproduz o ambiente – e a concentração – de uma igreja barroca, expõem-se três retábulos da sua autoria: o da Misericórdia de Peniche sobre a crucificação, cujos painéis se encontravam dispersos e que são aqui reagrupados pela primeira vez desde o século XVIII, depois de os técnicos de restauro do MNAA terem procedido a uma limpeza profunda das duas pinturas laterais, Cristo no Horto e Cristo Atado à Coluna; o retábulo sobre a vida de Santa Teresa de Ávila, da Igreja Matriz de Cascais; e duas santas de um retábulo que terá existido na sacristia da Igreja Matriz da Lourinhã.

“Não pretendemos que a exposição seja sobre toda a obra conhecida da Josefa”, explica Joaquim Caetano. “Pretendemos mostrar que, ao contrário do que se pensa, ela não é uma pintora de naturezas-mortas. Não é uma rapariga que está fechada em casa a pintar bolinhos.”

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