Atenção que se vai ouvir world fado

Cuca Roseta queria um produtor brasileiro para o seu terceiro disco e um feliz acaso “trouxe-lhe” Nelson Motta. Riû, nas lojas dia 18, mistura no título riso e água e abre o fado a outras músicas.

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Miguel Manso

Ela conhecia-o das músicas (“A canção Como uma onda marcou a minha vida”), ele soube dela através do filme Fado, de Carlos Saura. “Achei essa garota impressionante”, recorda agora. “Não é uma garota bonita só, garotas bonitas há milhares pelo mundo. Era uma beleza forte, mediterrânica, e cantando divinamente.” Sensibilizado com o que vira, Nelson Motta falou de Cuca Roseta numa entrevista.

Ela recorda: “Quando eu gravei com o Gustavo Santaolalla [que produziu o seu primeiro disco, em 2011] vieram dizer-me que o Nelson tinha falado de mim e que tinha adorado a minha participação no filme. E fixei o nome.” Mais tarde, pensou em ter um produtor do Brasil no seu novo disco. Razões? “Achei que o meu fado tinha a positividade e a melancolia do samba. E fui à procura do Nelson Motta. Queria muito que ele fosse o produtor, mas achei que era impossível.” Cuca não sabia, mas Nelson também a procurava. Ficara com “a Cuca na cabeça”. Ou com “a Cuca na cuca”, como se diz no Brasil.

Um dia, telefonam a Cuca Roseta a dizer que Nelson Motta estava em Lisboa e propunha jantarem juntos, porque tinha um projecto para ela. Jantaram. O que ele tinha para lhe propor era “um disco e um show, cinco ou seis novos fadistas cantando grandes clássicos do samba. Seriam ela, o Zambujo, a Ana Moura, o Camané, a Carminho e não sei quem mais.” Ela ouviu atentamente, mas no final do jantar arriscou: “Não quer produzir o meu disco?” “Um pedido de casamento me chocaria menos”, observa Nelson, rindo. Não lhe disse logo que sim. “A minha vontade na hora foi aceitar. Mas tenho 70 anos, já aprendi a não responder logo." Pediu “algumas horas para pensar” e no dia seguinte estava tudo resolvido, “com as limitações geográficas naturais.” O outro projecto, que tinha sido sugerido por um amigo de Nelson Motta, ficou pendente. Mas não esquecido, garante.

Correspondências
Começaram, então, a “correspondência”: Cuca Roseta tinha algumas letras e compositores que gostava de integrar no disco. “Sempre por mail, estávamos 24 horas ligados. Ele dizia: ouve esta música; e eu ouvia. E íamos seleccionando.” Ela gravava com os músicos, à experiência, enviava-lhe e Nelson dava a sua opinião. Assim foi nascendo o disco, que ficou com 14 temas, dos quais sete com letras dela (dois que ela própria musicou e quatro com músicas de Jorge Palma, Mário Pacheco, Bryan Adams, Sara Tavares e Júlio Resende) e três com letra de Nelson Motta (com músicas de Jorge Drexler, Ivan Lins e Djavan, que canta e toca no disco). Os outros quatro são um tema de João Gil e José González (Canto do coração) e versões de Tudo por tudo (um fado clássico de Fernando Farinha e Casimiro Ramos), Verdes são os campos (de José Afonso, sobre poema de Luís de Camões) e E la chiamano estate, com letra do cantautor italiano Franco Califano (1938-2013) e música de Bruno Martino (1925-2000).

Quem imaginar Riû como um disco de fado errará. É, antes, um disco de uma fadista aberta a outras músicas, onde o fado, ou o sentimento fadista, impera como “padrão” unificador. Como produtor, Nelson estava consciente das suas limitações. “Eu jamais poderia fazer um disco de fado, não tenho conhecimento para isso. Tenho amor pelo fado, o que é diferente. Mas conheço muito a música do mundo, não só brasileira. Então eu queria fazer um fado do mundo, um world fado, pegar músicas de várias procedências, origens e épocas, canções bonitas que pudessem ser apresentadas numa nova versão como fado. A Cuca entendeu imediatamente isso.”

Ela confirma. “Sim, porque o fado é português mas é world music, é cantado nos festivais de músicas do mundo. Ora cruzar o fado com outras músicas já foi feito pela Amália, é feito pela Mariza, até a Ana Moura o fez agora com Desfado. Quando o Nelson falou nisso, nem pensei que fosse um risco, sequer. O que mantém uma fadista é o respeito pela poesia, as letras, a história que se conta, e os músicos de fado. O que faltava ao Nelson no fado tinha eu. E o Nelson tinha o bom gosto, a experiência...”. “E a memória, que ajuda bastante”, acrescenta o produtor e compositor.

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Miguel Manso

O riso, a água e a prece
A foto da capa de Riû é de Bryan Adams, que fotografou Cuca Roseta numa sessão para a capa da Vogue portuguesa, assim como a outras quatro fadistas (Aldina Duarte, Ana Moura, Carminho e Gisela João). “O Bryan Adams fez parte da minha adolescência, apesar de não ter nada a ver com o fado. Então aproveitei a oportunidade e pedi-lhe uma música.” Funcionou à segunda. A música era inédita, ela escreveu a letra, ele “gostou muito” e assim nasceu Quem sou.

Já o título do disco, Riû (com um acento circunflexo a coroar o “u”), é uma outra forma de dizer o que ela é. “Existe sempre uma ligação à natureza nos meus discos: no primeiro foi a pena, no segundo a raiz e agora é a água. Porque o encontro com a natureza traz-me exactamente o mesmo que o fado: paz de espírito e equilíbrio emocional. Por isso há aí o ‘riu’ de rir, que é o lado que eu queria ter neste disco, com a mesma intensidade do fado, mas positivo.” Na imagem da capa ela ri e nas canções a voz flui, como sugerem os movimentos das águas.

Por falar em voz: Cuca Roseta brilha de forma especial no tema-título, no quase twist Amor ladrão, no samba-marcha Lisboa de agora, no balanço afro de Ser e côr ou na bela canção italiana pela qual Nelson se apaixonou há muitos anos, E la chiamano estate. Mas também no tema que fecha o disco, Rua da Oração, de novo uma prece como nos discos anteriores, mas que começa como canção de embalar. A letra (escrita por ela, com música de Júlio Resende) é uma resposta, actual, à clássica Rua do Capelão. “Essa música marca desde sempre a minha carreira, diz-me muito, mas a Rua do Capelão já não tem nada a ver com a descrição que eu canto todos os dias. Por isso fui cantá-la com o que ela é hoje: uma rua toda limpinha, que já não tem o rosmaninho mas tem as fotografias dos grandes fadistas.” Só voz e piano, numa atmosfera de música de câmara.

Nelson Motta junta-se a esta prece. “Foi uma bênção de Deus, compartilho com a Cuca esse agradecimento. Por termos feito um disco tão bonito, tão cheio de amor, alegria, poesia. O que de melhor, enquanto artistas, a gente pode dar para as pessoas?”

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