A mulher que tinha o mundo todo na garganta

É uma das revelações do ano: ao segundo álbum, Nadine Shah deixa de ser promessa e passa a ser certeza. Uma voz do outro mundo, um par de guitarras e uma capacidade rara de ir às emoções mais penosas. Atentem nela.

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Em última instância, Fast Food é um disco de indie-rock, mas um estranhíssimo disco de indie-rock DR

Foi há coisa de sete anos: Nadine Shah tinha 21 “e sonhava ser uma cantora jazz” quando se deparou com uma voz cava com cascatas de violinos em fundo. Era Scott Walker, não o recente (que muitos consideram inaudível), nem o da pop dos Walker Brothers, antes o Scott dos primeiros discos a solo, luxuosos, hiper-arranjados e sombrios.

 De Scott Walker para Love Your Mom and Dad, o disco de estreia da menina Shah, datado de 2013, não foi só um pulinho – e deste para Fast Food, o seu segundo e recém-lançado álbum, também não. Love Your Mom and Dad “foi muito bem recebido”, recorda Shah, notando que “isso foi um pouco estranho, porque era um álbum muito complicado”. De repente, a moça que cresceu a ser “a outsider” deparou-se com “salas esgotadas, e não estava à espera disso”.

Apostamos a totalidade da nossa conta bancária em como depois de Fast Food as salas permanecerão esgotadas – mas serão mais e maiores. Atenção: estão em jogo 50 cêntimos. Fast Food é um título irónico para um disco que ecoa os inícios de carreira de Nick Cave ou PJ Harvey. Ainda assim, “não é propriamente um disco comercial”, como Shah refere. Mas “é mais acelerado e com melodias mais acessíveis”, razões que Shah encontra para “estar a ser tocado na rádio”. Não apenas na rádio: os jornais, as revistas especializadas, os sites, todos se têm rendido à senhorita.

O assunto das canções também ajuda: “Desta vez estou a cantar sobre o amor, que é universal, enquanto no primeiro cantava sobre sanidade mental." Convém esclarecer: no centro de Love Your Mom and Dad estava "o suicídio de um rapaz”. Ora, esse rapaz fora namorado de Shah “uns anos antes”. Bastam os primeiros segundos de Aching bones, a faixa de abertura desse álbum, com um som metálico, bateria militar e uma linha de baixo e um piano tétricos que nos fazem crer que o apocalipse está prestes, para sabermos que Shah não anda cá para nos adocicar a alma: o disco é duro, o equivalente musical a trabalhos forçados; nesse sentido, e por comparação, Fast Food quase parece uma massagem.

Se a pop, como se costuma dizer, é o território de eleição dos que estão de fora, dos que não se sentem integrados, então Nadine Shah cumpre todos os requisitos: filha de pai paquistanês e mãe dinamarquesa, nasceu em Whitburn, pequena terra do Reino Unido, e foi “sempre a miúda estranha”. Em casa o pai “ouvia música sufi” e ela “não gostava nada”. O tempo veio em socorro do senhor Shah: “Agora adoro [música sufi], mas ainda não percebo a língua”, diz, o que nos deixa a pensar que uma pessoa pode ser estranha não só na sua própria casa como também à sua língua. Em Nothing else to do, tema do novo álbum, surge um instrumento de cordas árabe, quase no final da canção. Shah pode não saber a língua, mas aprendeu a usar a herança.

“A minha mãe adorava os Walker Brothers”, recorda. Um dia ela mostrou à sua progenitora os últimos discos de Scott: a mãe Shah “ficou muito desiludida quando ouviu as novas coisas. Perguntava 'Isto é alguma coisa de jeito?' Fiz zangar a minha mãe”, ri-se ela.

Para quem canta sobre assuntos tão pesados, Shah é estranhamente acessível – ou, pelo menos, aparenta não ter manias. Diz “nunca ter sido vítima de racismo”, facto que atribui “à sorte de ter estado sempre rodeada de gente boa”. Faz uma pequena pausa e continua: “Bem, os miúdos implicam com tudo, não é?, e por vezes implicavam comigo por ser paquistanesa, mas não me parece que o fizessem de maneira diferente do que se eu fosse ruiva. Talvez por o Reino Unido ser tão multicultural."

Não sendo “uma música treinada”, Nadine vivia “na frustração de não poder fazer a [sua] própria música”. A seu favor tinha “uma voz tecnicamente boa”, citação que merece ser aprofundada: Shah tem uma “daquelas” vozes – funda, com gravitas – que se passeiam com facilidade pelas notas mais graves e sobem de repente, provocando arrepios. Podia estar a cantar uma receita de ervilhas com ovos escalfados que nos faria crer que debitava sobre o estado do mundo. 

Se a voz é tecnicamente boa ou não, isso é o menos importante – o que é relevante é a sua fundura emocional. Em caso de dúvidas a este respeito, dirijam-se a Washed up, sétimo tema de Fast Food: começa com guitarras dedilhadas, vai aumentando de intensidade e no refrão há coros e coros assombrados em duelo. Canção-maravilha.

Sem saber o que fazer à sua voz, Nadine “cantava as [canções] dos outros” e, adorando jazz, mudou-se “para Londres com o fito de ser cantora de jazz”. Cantou em bares, conheceu “muitos músicos”, mas continuou a dar com a garganta nas paredes: “Não saber tocar um instrumento continuava a ser uma frustração enorme, pelo que desisti do jazz e fui estudar arte." Talvez tivesse outro talento que desconhecesse, pensou, quando tomou a decisão – a ironia é que “os professores acabaram todos por [lhe] dizer que era música”. 

Continuava a ouvir muito jazz mas, guiada por eles, começou “a tocar piano”, um piano cuja presença neste disco é mínima – embora seja a base de Big hands; ainda assim, no fim da canção o que sobressai é a luta entre as guitarras e a voz, que aliás atravessa o disco. “Eu só queria saber o suficiente para fazer uma melodia de apoio à voz, de modo a ter qualquer coisa que se assemelhasse a uma canção”, confessa. 

Nessa altura, os seus pais “ainda tinham de [a] ajudar com a renda”. Foi quando descobriu Scott Walker, que surgiu na sua vida já depois de Nick Cave e PJ Harvey – esta foi a sua “primeira grande obsessão musical”: “Uma mulher a cantar sobre aqueles assuntos, com aquela força? Era impossível não a adorar." Aching Bones, o seu primeiro EP, veio quando tinha 23 anos. “Os meus pais estavam preocupados com o que eu ia fazer da minha vida”, confessa, mas de repente “tinha três ou quatro concertos por dia e tocava em bares e restaurantes”. 

O esforço começou então a ser compensado. Houve pessoas que se ofereceram para tocar com ela, que tinha apenas umas canções para mostrar: “Uma canção, no meu caso, é voz, piano e uma melodia. Não havia mais do que isto." Ora, isto foi suficiente para “imensos produtores” a abordarem, sendo que havia um problema: nenhum queria fazer o mesmo que ela. Os produtores que se acercavam de Nadine Shah “queriam que fosse uma Adele”. E isso não a atraía. 

A resposta estava na sua discografia: “Comecei a ouvir os discos de que gostava e a dada altura notei que o Think Tank [dos Blur] era muito bem produzido e que o Ben [Hiller, produtor do disco] capturava bem o som de Marrocos [onde o álbum foi gravado], e quis falar com ele. Fomos tomar café, foi muito acessível, tínhamos gostos similares. Para mim era muito importante poder ter uma relação simples e boa com a pessoa com quem trabalhasse."

Hiller ficou – ele e Nadine agora são amigos. Tornou-se não só produtor como co-compositor de Love Your Mom and Dad e Fast Food, seguindo à risca um meticuloso plano para tomar o mundo: “Entrámos uma vez no estúdio, eu toquei as melodias ao piano, começámos a improvisar, ele fez umas linhas de guitarra, gostámos e continuámos."

Do amor
Love Your Mom and Dad valeu a Shah ser incluída naquelas listas de pessoas a ter em conta – e por uma vez estavam certas. O disco, contudo, revelou-se demasiado pesado para os pais de Shah: “Eles preferem este disco. O outro nem por isso." Como a imprensa comparava a menina a Nick Cave e a PJ Harvey (não sem razão, diga-se), ela mostrou Cave e Harvey aos pais: “A minha mãe adorou. Tornou-se fã de bandas de rock'n'roll, uma mulher de 60 e tais anos. E agora são fãs e pedem-me mais música."

Sendo a pop um universo em que se dizem as mais terríveis coisas por entre uma ruideira que não permite que se entenda metade do que os vocalistas cantam, ao início a temática de Love Your Mom and Dad (título que também é culpado do crime de ironia) passou despercebida: “Demorou algum tempo até que os media começassem a escrever sobre o que eu cantava nesse disco – às vezes eu tinha de explicar. Não era um tópico leve. O estranho – ou não – é que muita gente veio dizer-me que ficou muito agradecida por ter feito o disco."

Quem também agradeceu foi a carteira de Shah: há um ano que consegue viver só da música. Desta vez, o desafio era conseguir fazer o batido soar diferente: o tema é o amor e o espectro instrumental é limitado – baixo, bateria, guitarra com um pendor new-wave vagamente gótico, que às vezes faz recordar as guitarras dos Cure dos primeiros tempos. “A maior parte dos standards de jazz é sobre amor”, diz Shah, “pelo que não é um território novo para mim. O que acho fascinante é quando um artista pega num assunto por de mais falado e lhe dá uma voltinha muito sua. Pelo que acabou por ser um desafio maior do que escrever sobre saúde mental – ninguém escreve sobre saúde mental."

Em última instância, Fast Food é um disco de indie-rock, mas um estranhíssimo disco de indie-rock – como se Robert Smith e os Joy Division fossem a banda de apoio a uma crooner que, mais do que romântica, tem o seu quê de desesperado. Em Nothing else to do surgem metais – tão melancólicos que parecem anunciar o fim de qualquer coisa. Isto acontece por vezes no disco – surgir um instrumento inesperado, que altera a atmosfera. As guitarras esgadanham-se – mas no fundo só lá estão para preparar o cenário em que a voz brilhará. É indie-crooning.

“É-me difícil discutir este disco”, confessa Shah em fim de conversa, “porque para ser honesta é sobre mim, talvez muito revelador”. “Senti-me um pouco exposta”, confessa, mas não poderia ser de outra maneira: “Eu não conseguiria cantar sobre algo com que não tivessse uma relação emocional. Um bom actor encontra algo num papel com que se relaciona. Eu faço o mesmo: ainda que cante sobre outras pessoas, procuro encontrar qualquer coisa com que me identique. A PJ Harvey tem uma canção em que fala sobre afogar uma criança – para mim é sobre aborto, mas pode ser sobre outra coisa. O que interessa é que nos identificamos com a dor."

O que interessa é que – identifiquemo-nos ou não com Fast Food – a menina Shah tem um vozeirão e grandes canções. E é uma das revelações deste ano.

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