As pessoas sérias e a Cultura, au Congo

Na Gulbenkian, foram as pessoas muito sérias quem reduziu olimpicamente o seu raio de acção e alterou em prol da sua intervenção para a agenda do empreendedorismo, do filantropismo, para as parcerias e outras coisas modernas cheias de tudo e, sobretudo, de nada.

A demissão de António Pinto Ribeiro de programador da Fundação Calouste Gulbenkian não importa como episódio, mas como sintoma. O efeito de mediatização do telefonema deu-lhe já uma patine feia e infantil que envenena a discussão. Por isso mesmo é necessária alguma crítica.

Deixo uma declaração de intenções: trabalhei para o António Pinto Ribeiro e tenho admiração profissional pelo seu trabalho. Desconheço a carta de demissão, à excepção do que foi publicado, nem falei com o próprio. Mas conheço a casa, a Gulbenkian. Bem. Tal como Augusto M. Seabra escreve no PÚBLICO, é uma casa onde cada feudo é um reino, por isso, ingénuo aquele que aceita ser rei sem reino. Depreende-se alguma ambiguidade na crítica: talvez se refira a um APR ingénuo, talvez não, mas isso são futilidades que não servem esta discussão. Este episódio desvela um problema estrutural que se observa em quase todas as grandes instituições culturais privadas e públicas do país: serem reduzidas a plataformas de interesses e jogos entre pessoas muito sérias. E isso tem custos, culturais e políticos. Não sei (mas todos sabemos) por que razão Artur Santos Silva foi nomeado para Presidente da Fundação Gulbenkian. Tal como ninguém sabe (mas todos sabemos) por que razão vai António Lobo Xavier para presidente da Fundação Casa da Música. Nunca lhes ouvi, nem a um nem ao outro, uma centelha de opinião informada sobre a missão pública de uma e outra fundação. Mas ambas têm um Fundo, e isso interessa. Não aos próprios, que não precisam de dinheiro nem de o ir buscar ali, mas aos seus (e aos que desejam fazer parte dos seus, como a crítica gratuita de Renato Epifânio deixa transparecer). Estas casas são Fundos de poder e influência e de gestão de grupos sociais concretos, e, cada vez mais, apenas isso. Pode argumentar-se que isso é absolutamente legítimo. No caso da Gulbenkian, com alguma dose de razão. Porém, lamento, não é por ser originalmente privada que se torna propriedade de alguns. Sobretudo de pessoas muito sérias. Porque, na Gulbenkian, foram as pessoas muito sérias quem reduziu olimpicamente o seu raio de acção e alterou, declarada e progressivamente, em prol da sua intervenção para a agenda do empreendedorismo, do filantropismo, para as parcerias e outras coisas modernas cheias de tudo e, sobretudo, de nada. E certo, tudo isso conviveu com outros ismos, do multiculti ao interculturalismo, cheios de tudo (e nada para outros). Mas agora houve uma escolha. Uma escolha política e ideológica que não cabe na novela.

No Tintin au Congo, de 1931, um empresário português oferece a Tintim 50 mil escudos pelo exclusivo da sua viagem ao Congo. O jornalista dedica-se a ser europeu, o que significa, na altura, algo de muito específico: educar o indígena a ler e contar; caçar leões, elefantes e crocodilos; organizar o indígena para lutar as guerras dos brancos bons contra os brancos maus. No fim, o indígena retribui erigindo uma estátua em sua honra (e de Milu). De todos os livros de Hergé, este é o Tintim mais fraco e desinteressante porque reduz o colonialismo a uma ópera bufa numa tentativa de apagão (tal como Rossini tenta apagar a revolução francesa reduzindo tudo à comédia de salão): as relações com indígenas são infantis (porque infantilizam, na realidade, como bem descreve Fanon e muitos outros antes dele) na mesma medida em que as lutas com os animais são inverosímeis e sem graça; uma comédia sem riso. A forma como os europeus se entretinham a olhar para África é politicamente abjecta e reveladora dos próprios. O Congo não era o Congo, mas o que a Europa achava que devia ser.

O único equívoco, para corrigir o sentido da crítica de Augusto M. Seabra, não é APR achar que podia ser rei (se alguma vez achou), mas acharmos todos que este conjunto de pessoas muito sérias, de Artur Santos Silva a António Lobo Xavier, aceitaria mais internacionalismo do que totens de si próprios espalhados por um Portugal onde se vêem como Tintim no Congo. A recusa em expor o livro de Anton Kannemeyer é o apagão e a atitude de APR é absolutamente justificada. As pessoas muito sérias querem que voltemos ao Congo de Tintim, e parece que conseguiram. Este é o problema que a crítica tem de enfrentar: erigir estátuas ou obrigar a pensar.

Assessor parlamentar do Bloco de Esquerda

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