A Anita sempre se chamou Martine

Para nós, portugueses, a menina doce e bem-comportada dos livros de infância será sempre a Anita. Mas Martine é o seu nome original.

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Um dos novos livros em que a personagem se passa a chamar Martine, o seu nome original dr
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Um dos novos livros em que a personagem se passa a chamar Martine, o seu nome original dr
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Um dos novos livros em que a personagem se passa a chamar Martine, o seu nome original dr
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Uma edição da Anita quando era editada pela Verbo Infantil dr
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Uma edição mais recente da Anita dr
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Uma edição mais recente da Anita dr
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Uma edição mais recente da Anita dr

Aos 61 anos, Anita mudou de nome. Na verdade, recuperou o nome original: Martine. Porquê e para quê?, questionam-se os leitores que já não são crianças há muito tempo, mas que têm memórias desta personagem bem-comportada que era das poucas dadas a conhecer em edições ilustradas (e cuidadas) num panorama árido de publicações para a infância em Portugal nos anos 1960.

“Os livros da Anita são maus livros muito bem feitos”, disse-nos um dia o professor universitário de Literatura para a Infância e Juventude José António Gomes.

O primeiro livro da Anita foi publicado em 1954, com o título original Martine à la ferme (Anita na Quinta), com texto do escritor e poeta francês Gilbert Delahaye e ilustrações do belga Marcel Marlier.

Agora, em 2015, segundo a informação que nos chegou, a Casterman e a Zero a Oito “acreditaram que seria a altura perfeita para trazer à protagonista o seu nome original: Martine. Simon Casterman, descendente do fundador da editora-mãe da Martine, justifica assim a decisão:Achámos que era altura de fazer algumas alterações na vida de uma das mais queridas figuras femininas da literatura para crianças. Muitos editores e tradutores com quem falámos concordaram que estava na altura de fazer uma nova tradução. (…) Duas gerações de leitores partilharam com grande entusiasmo as aventuras de Anita: agora é altura de passar essas histórias à próxima geração.’”

É um golpe de marketing?, perguntámos a Joana Faneco, responsável pelo marketing e comunicação da editora. Resposta obtida via email: “Esta mudança é uma estratégia global da editora Casterman, que pretende tornar a marca ‘Martine’ universal. Cada vez mais as crianças de todo o mundo estão unidas pelas mesmas histórias, pelos mesmos temas, pelos mesmos heróis de animação. Todas elas sabem quem é o Mickey, o Noddy e o Harry Potter. Esta razão, aliada ao conceito de ‘aldeia global’ em que vivemos actualmente, faz com que a decisão de voltar às origens ganhe todo o sentido.”

Não anteviram que mexer com “a memória afectiva literária” poderia afastar os potenciais consumidores/compradores dos livros? Não tiveram em consideração que a nostalgia dos adultos pode ser um impulsionador das leituras das novas gerações e que a “simples” mudança do nome pode gerar “anticorpos” e diminuir as vendas?

Não Mexam na Anita, Seus Badalhocos!
“Obviamente que todos temos pena de deixar para trás um nome que fez parte da nossa infância. Aliás, a maioria da nossa empresa é constituída por mulheres de várias gerações, e compreendemos bem o significado desta mudança”, responde Joana Faneco, já depois de a Mixórdia de Temáticas, do humorista Ricardo Araújo Pereira, na manhã desta quinta-feira, ter lançado na Rádio Comercial o movimento Não Mexam na Anita, Seus Badalhocos!



Quisemos saber os efeitos da iniciativa dos humoristas nas rotinas da editora: “Começámos a perceber o burburinho que, aos poucos, se foi criando na comunicação social e nas redes sociais sobre este tema. Muitas pessoas nos têm ligado para partilhar a sua opinião e temos sempre tentado explicar as razões que estão por detrás desta mudança e, principalmente, que as histórias não mudaram.”



A responsável pela comunicação recua no tempo: “Quando voltámos a trabalhar esta colecção, vieram à memória todas as recordações e sentimentos de criança que nos fizeram tão felizes. E aos poucos fomos percebendo que o encanto da Martine vai muito para além do nome. As ilustrações e os valores que os livros transmitem continuam lá, iguais, sem tirar nem pôr: a família, o respeito pela natureza e pelos animais, a amizade, etc.”

Joana Faneco admite riscos comerciais: “Sabemos que esta decisão poderá afectar as nossas vendas, mas preferimos trazer de volta a colecção a Portugal com o nome Martine. Este não é um sentimento de uma pessoa só, mas sim de toda uma equipa. Só no projecto Martine estiveram envolvidas mais de dez pessoas.”

Na impossibilidade de contacto directo com o coordenador editorial (filho do fundador da Verbo) nem com a directora-geral da Zero a Oito, Maria Morais Leitão (que acompanhou o processo desde o início), Joana Faneco informou que esta decisão de “rebaptizar” a Anita “foi tomada pela editora Casterman e pela Zero a Oito, em conjunto”. E já estão editados em Portugal dez títulos com o nome Martine. 

Livros próximos da pintura
A responsável pelo marketing deu ainda alguns pormenores sobre a actualização de contextos: “O trabalho que desenvolvemos foi muito meticuloso. Preocupámo-nos também em adequar alguns detalhes dos livros à fonética e à realidade das crianças de hoje. A alusão a objectos como o gira-discos (no livro Martine Faz Anos) é um exemplo da importância de ajustar estas histórias. Uma simples mudança de – ‘Vamos dançar ao som do gira-discos!’ para ‘Vamos dançar!’ –, que faz todo o sentido e que torna estes livros mais acessíveis ao público infantil da actualidade.”

A menina doce e bem-comportada foi criada após a II Guerra Mundial, depois de um período conturbado. As narrativas organizam-se sempre em torno da menina, onde até os pais são personagens secundárias, com muito pouco peso na acção e na ilustração.

Plasticamente falando, os livros da Anita distinguiram-se imediatamente dos infanto-juvenis da sua época. “Estavam próximos da pintura, com aguarela e guache. O traço era mais liso e brilhante do que nas ilustrações mais comuns daqueles tempos”, disse a editora Maria José Pereira no aniversário dos 60 anos da Anita (agora Martine) na edição do ano passado do Livros a Oeste.

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