Filipe Carvalho: um motion designer entre a HBO e a Marvel

Do lado de lá gabam-lhe o "olhar cinematográfico". Sem sair de Portugal, Filipe Carvalho colabora com alguns dos mais reputados estúdios norte-americanos, visualizando genéricos de séries como "Cosmos" e filmes como "Thor 2".

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Autodidacta, Filipe Carvalho tem 34 anos e vive em Lisboa

Há sete anos, o "webdesigner" Filipe Carvalho decidiu reinventar-se. Começava, a pouco e pouco, a estudar "motion design", a decair para as imagens em movimento na agência onde trabalhava, a seguir o percurso de autênticos gurus na área, a construir projectos que sabia que nunca saíram da gaveta. Enfim, a "fazer" portefólio. O esforço compensou: saltou então para a produtora Até ao Fim do Mundo como "motion designer", onde trabalha ainda hoje, mas decidiu sonhar mais alto.

Como ferveroso amante de cinema e de séries de televisão, enviou um simples e-mail ao estúdio Digital Kitchen, tão somente aquele que assina os icónicos genéricos de "True Blood", "Dexter", "Six Feet Under", entre outros. "Tentei a minha sorte", conta, em entrevista por Skype ao P3. Não lhe correu mal, dizemos nós. Três semanas depois vinha a resposta sob a forma de um trabalho para a Microsoft, proposto a vários designers de todo o mundo.

A partir daí nunca mais parou. Se durante o dia Filipe, de 34 anos, senta-se no escritório de Carnaxide, à noite — efabulemos — põe uma capa de super-herói, atravessa o Atlântico numa via digital e trabalha remotamente para a HBO, Fox ou Marvel, imaginando conceitos visuais para séries como "Game of Thrones" e "Cosmos" ou filmes como "Thor 2", para estúdios tão reputados como o próprio Digital Kitchen, Elastic, Blur, entre outras. No início recebia cerca de três trabalhos por mês, agora tem projectos todas as semanas. "Já tenho de rejeitar. Tem sido uma evolução."

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Proposta para Sons of Liberty Filipe Carvalho

"Olhar cinematográfico"

Autodidacta desde sempre (no final do 12.º começou logo a trabalhar), nos EUA gabam-lhe o "olhar cinematográfico". Já é, aliás, conhecido pela sua "visão europeia", e é por ela que o procuram, com a HBO e os canais FX à cabeça. Os próprios estúdios, com "tanta concorrência", querem distinguir-se. E ele pode ajudar.

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Proposta para O Fantástico Homem-Aranha 2 Filipe Carvalho

No fundo, o que lhe costumam pedir é para "criar um conceito visual" que sirva de abertura para a série ou filme. Geralmente, os estúdios enviam um episódio piloto ou o guião aos vários "motion designers" espalhados pelo mundo com que colaboram; um deles é Filipe, que, depois de assinar um ou outro acordo de confidencialidade, tem então alguns dias para elaborar uma "ideia imagética". Por vezes, tem de ler o guião inteiro numa noite; depois procura sintetizar, visualmente, a proposta. "O que faço é criar um conceito visual. Tento arranjar as imagens para o genérico, ou o que eu acho que deve ser o genérico, que depois é construído a partir delas." Segue-se a segunda parte do trabalho: a apresentação. "Uma parte é a imagem, outra parte é o discurso, a comunicação do conceito. É uma parte que talvez não seja tão visível."

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O storyboard de Cosmos Filipe Carvalho

No final, o seu conceito visual até pode não ser o escolhido, mas é sempre pago. Também aqui o que importa é o "processo" — é isso que o move. No seu site, dá-nos um vislumbre de algumas propostas, como para "Game of Thrones", "Sons of Liberty" e "O Fantástico Homem-Aranha 2". Algumas viram a luz do dia, como o genérico de "Cosmos - A Spacetime Odissey", desenvolvido a partir do "ambiente e conceito" de Filipe, que chegou mesmo a ser nomeado para um Emmy em 2014. Ou a mudança de visual ("rebrand") do canal PBS Indies, uma das actividades a que também se dedica enquanto "motion designer".

Quem não arrisca...

Ao trabalhar com o gigantesco mercado norte-americano de entretenimento, Filipe Carvalho deparou-se com processos de trabalho "muito diferentes" — bem como os pagamentos. Os projectos são mais longos, mas também mais "ponderados". Por agora, concilia o emprego a tempo inteiro com a carreira "freelancer". Nas piores alturas, acaba por passar quatro dias a dormir três ou quatro horas por noite, aproveitando as madrugadas para trabalhar, em sintonia com o fuso horário americano. 

Costuma dizer que, se não fizesse o que faz, seria fotógrafo. Por isso, é natural que pense agora em passar para trás das câmaras. Nova reinvenção à vista? "Gostava de realizar filmes. As próprias imagens dos genéricos, filmes, curtas, publicidade." Sempre a piscar o olho ao "mercado internacional".

Já teve uma primeira experiência. Há dois anos, para conseguir entrar furtivamente no mercado de Hollywood, criou um genérico de um filme fictício. Chama-se "The Architect" e nele figuram nomes como Kevin Spacey, Bryan Cranston, Tilda Swinton, Philip Seymour Hoffman e Javier Bardem (ver vídeo à esquerda). A produção tem assinatura de George Clooney e Steven Soderbergh, Anton Corbijn é o director de fotografia, Gus Van Sant o argumentista, David Fincher o realizador. A lista continua, repleta de figuras que Filipe admira.

Durante quatro meses trabalhou neste vídeo, do "conceito à filmagem". Filmou, editou, montou; só não fez a música. "Quis distanciar-me do resto dos meus trabalhos. Mostrar que sei filmar, editar, que também sou muito fotográfico." O esforço compensou. Publicou-o online e o 'feedback' foi "muito bom". Depois, conta Filipe entre risos, decidiu enviá-lo para o Elastic, estúdio que trabalha com David Fincher. Angus Wall, editor dos filmes do realizador norte-americano, respondeu-lhe: "Gostei muito, mas nunca vais conseguir juntar essas pessoas todas num filme." A partir daí começou a trabalhar com esse e outros estúdios (como o Blur) e as portas escancaram-se para projectos como "Thor" e "O Fantástico Homem-Aranha 2".

Por tudo isto, já teve "várias respostas" à pergunta da praxe: "Pensas emigrar?" Se por um lado até consideraria cruzar o Atlântico para se aproximar mais do meio e acompanhar os processos de trabalho do início ao fim, por outro gosta deste emprego à distância. "Tenho 34 anos, já tenho outras questões familiares. Estou no meu país a trabalhar para fora onde pagam muito melhor. E o dinheiro cá tem mais importância porque o nível de vida é diferente."

Não é caso "único", assegura. Nos últimos meses tem marcado presença em diversas conferências em escolas e festivais (como o OFFF e o Get Set, que arranca na próxima semana), não só em Portugal, mas também em Espanha e na Holanda. Por vezes, em conversa com a audiência, apercebe-se de dois grandes problemas que impedem muitos de seguir as mesmas passadas: "Primeiro, o [domínio do] inglês nem sempre é muito bom e tem de ser para se conseguir trabalhar neste nível. Depois, as pessoas não acreditam em si próprias e quem não arrisca não petisca. O mercado é muito grande." Não se restringe a Portugal, mas sim ao mundo, sublinha. "Acho que se pode pensar globalmente."

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