Nemtsov falou do túmulo para acusar Moscovo de lutar na Ucrânia

Relatório em que o político assassinado estava a trabalhar revela que morreram mais de 200 soldados russos durante a guerra no Leste da Ucrânia. John Kerry encontra-se com homólogo russo e com Putin.

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Separatistas pró-Rússia tiveram apoio de soldados do exército russo, diz relatório Alexander Ermochenko / Reuters

Pelo menos 220 soldados do exército regular russo foram mortos no Leste da Ucrânia durante o conflito entre as forças governamentais e os rebeldes pró-Moscovo. Esta é uma das principais conclusões do relatório revelado esta terça-feira da autoria do político oposicionista russo, Boris Nemtsov, assassinado em Fevereiro.

As 64 páginas do relatório apresentam “provas exaustivas” sobre o envolvimento russo no conflito no país vizinho. O primeiro envio “em massa” de tropas terá acontecido em Agosto para apoiar uma contra-ofensiva dos rebeldes para tomar a cidade de Ilovaisk. Nessa operação foram mortos 150 soldados russos, diz o documento.

As famílias destas vítimas receberam dois milhões de rublos (cerca de 14 mil euros) em compensações pagas pelo Kremlin, em troca do seu silêncio sobre o envio dos soldados para a Ucrânia. Ao todo, Moscovo terá gasto 53 mil milhões de rublos (920 mil euros) para apoiar de várias formas os movimentos separatistas de Lugansk e Donetsk que combatem há mais de um ano as forças de Kiev, num conflito que já matou mais de 6100 pessoas, de acordo com a ONU.

Outra das principais intervenções do exército russo ocorreu, segundo o relatório de Nemtsov, entre Janeiro e Fevereiro durante o cerco a Debaltseve, um estratégico nó ferroviário perto de Donetsk. Na mesma altura, assinava-se em Minsk um acordo de cessar-fogo. Cerca de 70 soldados russos terão morrido durante essa ofensiva.

O relatório resume também a prática do exército russo de forçar os soldados que envia para o Leste da Ucrânia a apresentarem a demissão para que, na eventualidade de serem presos, não exista qualquer prova de um vínculo.

O Kremlin recusou, no imediato, a comentar as revelações feitas pelo relatório por ainda não ter tomado conhecimento do seu conteúdo. O Governo de Vladimir Putin negou desde o início todas as acusações – feitas regularmente pela Ucrânia, União Europeia, Estados Unidos e NATO – de que os seus soldados tenham sido enviados para combater ao lado dos separatistas. Quando confrontado com algumas provas de que houve soldados a lutar na Ucrânia, Putin apenas disse que se tratavam de “voluntários” a gozar de férias.

O documento, com o título Putin. Guerra, foi apresentado em Moscovo por Ilia Iashin, um dos aliados mais próximos de Nemtsov e que, logo após a sua morte, prometeu continuar o seu trabalho. As conclusões são apoiadas em elementos reunidos por Nemtsov nos meses anteriores à sua morte a partir de “fontes abertas”, “fontes anónimas em Moscovo” e testemunhos de familiares de soldados mortos. O antigo vice-primeiro-ministro começou a debruçar-se sobre o tema quando foi contactado por famílias de soldados que morreram na Ucrânia.

Nemtsov foi baleado a 27 de Fevereiro, enquanto passeava com a namorada, a poucos metros do Kremlin. A oposição a Putin relacionou de imediato o homicídio ao seu trabalho de investigação sobre o envolvimento russo na Ucrânia, mas o Governo russo disse tratar-se de uma “provocação”. A investigação policial apurou o envolvimento de separatistas do Cáucaso na morte de Nemtsov, mas os seus próximos falam de um inquérito orquestrado pelo Kremlin.

“A guerra com a Ucrânia é uma guerra não declarada, uma guerra vil e cínica que se trata de um crime contra toda a nação russa”, disse Iashin durante a conferência de imprensa.

O relatório de Nemtsov era bastante aguardado mas não tanto pelas novidades que pudesse dar a conhecer – nos últimos meses acumularam-se provas da ingerência russa no conflito, como a publicação de entrevistas a soldados russos a combater na Ucrânia.

As estimativas quanto ao número de soldados russos no Leste da Ucrânia têm sofrido algumas variações desde que o conflito estalou, em Março do ano passado. Em Março, o Pentágono avançou a maior contabilização até ao momento – 12 mil homens – e a NATO tem referido a presença de “milhares” de elementos das forças armadas russas.

“Putin irá ficar na história como o presidente que fez dos russos e ucranianos inimigos”, disse Iashin.

Kerry com Lavrov e Putin

Enquanto o relatório de Nemtsov era revelado, o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, reunia-se com o chefe da diplomacia do Kremlin, Sergei Lavrov, na estância balnear de Sochi, no Mar Negro. Trata-se do encontro oficial mais relevante entre responsáveis dos dois países desde que os Estados Unidos impuseram as primeiras sanções à Rússia – com objectivo de punir o envolvimento russo na Ucrânia e a anexação da Crimeia, em Fevereiro do ano passado.

No topo da agenda do encontro está a situação na Ucrânia. Kerry e Lavrov discutiram durante mais de quatro horas a "implementação das próximas etapas" dos acordos de Minsk, segundo um membro da comitiva norte-americana, citado pela AFP. John Kerry encontrou-se ainda com Vladimir Putin – uma reunião que o porta-voz do Presidente russo, Dmitri Peskov, tinha descrito como uma notícia "extremamente positiva".

À saída dos encontros, Kerry apenas referiu ter tido "discussões francas" com o ministro e o Presidente russo e disse ser "importante manter abertas as linhas de comunicação entre os EUA e a Rússia". O seu homólogo garantiu que "a Rússia está preparada para uma cooperação construtiva com os EUA". "Essa cooperação só será possível numa base justa e equitativa, sem tentativas de diktat ou de pressões", afirmou Lavrov, através de um comunicado.

As relações entre os dois países atingiram um dos pontos mais baixos desde o final da Guerra Fria, devido às trocas de acusações quanto às responsabilidades pela crise ucraniana. Washington acusa a Rússia de apoiar e promover a insurreição rebelde no Leste do país e Moscovo diz que foram os EUA que estiveram por trás da deposição do Presidente ucraniano, Viktor Ianukovich, em Fevereiro do ano passado. Os analistas não se atrevem a encarar a visita de Kerry como uma reconciliação total, antes interpretando-a como uma tentativa de desanuviamento das relações diplomáticas.

Para Putin, interessa mostrar que as sanções não deixaram Moscovo politicamente isolada, contando, para isso, com a presença russa em importantes arenas diplomáticas, como as negociações sobre o programa nuclear iraniano e a guerra civil síria – temas que também estiveram na agenda dos encontros desta terça-feira.

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