Sílvia criou um "crowdfunding" para imprimir a tese de doutoramento

Corte no financiamento da FCT a meio do doutoramento deixou a investigadora sem capacidade para imprimir tese que explora a capacidade de animais do fundo do mar ajudarem a tratar doenças. Isto não é apenas um "crowdfunding", é um grito de protesto contra a destruição da Ciência

Quando terminou as 172 páginas que condensam a tese de doutoramento feita entre os Açores, os Estados Unidos, a Alemanha e Lisboa, Sílvia Lino deparou-se com um problema — mais um entre os muitos que teve de contornar durante o processo (já explicamos). Os cortes que, "abruptamente" e a meio do doutoramento, a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) fez na bolsa que lhe tinha atribuído, deixaram a investigadora sem margem de manobra para... imprimir a tese. Se podia recorrer a familiares e amigos e, com algum esforço, conseguir os 750 euros de que precisa? Sim. Mas Sílvia quis criar um "crowdfunding". Porque esta campanha não é apenas uma questão de angariação de fundos": é uma chamada de atenção para "as grandes dificuldades que um bolseiro de investigação enfrenta" actualmente e "uma vontade de retaliar medidas políticas que estão a destruir a Ciência".

A aventura começou em 2010. Sílvia Lino, licenciada em Engenharia Biotecnológica, tinha ido para os Açores fazer um mestrado e ficado pelo arquipélago a fazer investigação. Um dia, assistiu a uma palestra de uma colega que falava sobre uma realidade que desconhecia: na pesca local, alguns animais — como esponjas e corais — ficam presos aos anzóis. Devido à profundidade de onde são puxados, mesmo que sejam devolvidos ao mar, a maior parte deles não sobrevive às diferenças de pressão. São, nesses casos, levados para terra para serem identificados e contados. Ao ouvir o relato, a investigadora, que desde cedo teve como sonho trabalhar em biotecnologia marinha, fez a pergunta que se impunha: o que fazem a essas amostras? A amiga respondeu-lhe: "Nada. Estão disponíveis para quem quiser estudá-los."

FCT diz "sim". E depois "nim"

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Estava dado o mote. Sílvia enviou "milhares de emails" para todos os cantos do mundo em busca de um local que aceitasse recebê-la como doutoranda: queria perceber se os animais do fundo do mar têm compostos que podem ser usados para tratar doenças como o cancro ou a malária. O "sim" veio do Center for Marine Biotechnology and Biomedicine, nos Estados Unidos, e da Universidade dos Açores, onde, sob orientação da docente Ana Colaço, fez parte da investigação. Depois de meses à espera, teve a resposta da FCT: tinha direito a uma bolsa de estudante (por quatro anos), propinas para a Universidade dos Açores, uma viagem por ano aos EUA, um fundo anual para participar em congressos e apoio final de 750 euros, destinados à apresentação da tese.

É já em 2012, com o trabalho de investigação a mais de meio, que os problemas começam: "por restrições orçamentais", a FCT avisava a investigadora de que os apoios tinham sido cortados. Com efeitos imediatos. Em vez de uma viagem por ano, teria direito a apenas uma em quatro anos; o fundo para congressos deixava de existir; e o apoio para a impressão final da tese também. Reviravolta total. "Mais uns milhares de emails" depois, conseguiu encontrar um novo grupo de investigação, mais próximo, para que fosse viável dar continuidade ao projecto. A Universidade Nova de Lisboa e o centro de investigação MARUM, na Alemanha, entraram na "estória".

"Bio prospecção em lípidos de animais marinhos de profundidade dos Açores para utilizações terapêuticas" — as 172 páginas de "resultados científicos promissores" estão escritas, mas não têm ainda como ser publicadas. "Testamos os animais como anti-bacterianos, anti-malários e cancerígenos e identificamos duas ou três espécies com grande potencial", disse ao P3 a investigadora de 35 anos. Caso o "crowdfunding" consiga atingir um apoio de 300%, será feito um site onde estará gratuitamente toda a informação sobre o trabalho científico desenvolvido nos últimos cinco anos, adianta: "Há muita gente que se identifica com o tema e, se conseguir esse dinheiro, trabalharia a informação de forma simples e interactiva para que chegasse a toda a gente."

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