Os sentimentos da juíza

Ian McEwan é um escritor irregular. Nascido em 1966 no Reino Unido, é agora conhecido no mundo inteiro.

Em 1988, li o seu primeiro livro Primeiro Amor, Últimos Ritos, publicado em Portugal pela Gradiva, que tem traduzido para português todas as suas obras. Na altura, fiquei surpreendido por aquela colectânea de contos, onde a depravação e a perda de inocência ocupavam o primeiro plano e por certo contribuíram para o epíteto de “Ian, o macabro” com que, nessa época, o autor ficou conhecido.

O Inocente é de 1990 e leva-nos a Berlim, onde o protagonista vive uma paixão intensa que nos transporta ao pesadelo. Amesterdão, Expiação (adaptado ao cinema) e Sábado foram grandes êxitos, mas prefiro a delicadeza sublime de Na Praia de Chesil, onde um jovem casal se confronta, na sua lua-de-mel, com a intensidade dos sentimentos amorosos e a sua inexperiência sexual. Esta obra deveria ser discutida por grupos de jovens, porque nos coloca no debate sobre a maturidade necessária ao início da vida sexual e o conjunto de emoções desse momento do desenvolvimento juvenil.

Os mais recentes Solar e Mel são para mim menos conseguidos, como se o autor se preocupasse com os temas da actualidade e perdesse fulgor na descrição dos sentimentos, matéria em que sempre revela um escritor de grande mérito.

Depois do meu recente livro O Tribunal É o Réu, dedico grande interesse aos temas relacionados com o sistema judicial. Foi por isso que li com curiosidade o último romance de Ian McEwan, A Balada de Adam Henry.

Este romance trata das dificuldades sentidas por uma juíza no seu trabalho no Tribunal de Família. O caso central do livro é o de um jovem quase a fazer 18 anos (portanto ainda menor) que, por ser Testemunha de Jeová, se recusa a receber uma transfusão de sangue, necessária ao tratamento da sua leucemia. Ao mesmo tempo que pensa na sua decisão, a juíza vive os problemas do seu casamento e aproxima-se em demasia do jovem Adam Henry, o que dificulta a sua isenção e análise objectiva do caso.

Estão muito bem descritos os dilemas da juíza, bem como a autonomia do adolescente perante as convicções religiosas dos seus pais. Até que ponto um jovem, quase a atingir a maioridade, será capaz de desobedecer aos pais em questões tão decisivas como a própria vida?

A obra é também importante para compreendermos as dificuldades actuais dos tribunais de família, como trato no meu livro. Ouçamos McEwan sobre o ambiente em causa: “Maridos gananciosos contra mulheres gananciosas, a manobrarem como nações no final de uma guerra, a apanharem das ruínas os despojos que podiam, antes da retirada final (…) Mães a impedirem os filhos de verem os pais, apesar das ordens do tribunal; pais a negligenciarem o apoio aos filhos, apesar das ordens do tribunal.”

No entanto, A Balada de Adam Henry não é dos melhores livros do autor. A relação da juíza com o adolescente e o seu desfecho não estão descritos com a intensidade psicológica a que Ian McEwan nos habituou: o leitor, preso no início da obra às dúvidas da juíza, poderá acabar por concluir que aquela história não lhe diz respeito, o que será pena para um tema tão interessante e actual.

A tradução portuguesa não ajuda. Para além de termos judiciários que não estão bem aplicados, no texto abundam os pronomes pessoais “ele”, “ela”, correspondentes ao he e she originais e que não são aceitáveis num texto em português. É que numa tradução conta muito a língua de chegada…

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