Espanha

Impressiona-me a morte diurna das cidades espanholas. A quietude solene da tarde ao sol. Como se o calor fosse uma visita do próprio fogo, afugentando, ameaçando tudo. Abandonam-se as ruas aos turistas, acordados como gente enjeitada, contemplando a pedra das casas fechadas, guardiões da solidão. Ficamos como gente em sonho. Há uma suspensão de todas as coisas, como se levitássemos ou fôssemos de mentira.

Impressiona-me que o tempo do dia possa ser de ausência numa cidade. Uma cidade que não está completa. É e não é o seu lugar. Adia-se.

Chego a Plasencia à hora em que tudo se adia. Não há ninguém e até o senhor na recepção do hotel tem os olhos pesados como se fossem para não ver. Digo as coisas duas vezes para ter a certeza de ser entendido, de ser atendido. Falar duas vezes é parecido a falar sozinho. Subo ao quarto enclausurado. Não quero esconder-me. Quero sair.

Plasencia é uma pequena cidade de belíssimo centro histórico que, por força dos horários e do feriado, não terei como visitar senão enquanto pardo bicho medindo paredes exteriores e cantos de rua.

Ainda pude perguntar a que horas abririam as portas todas. Talvez às cinco, talvez cinco e meia, algumas já só depois do feriado, depois do fim-de-semana. Horário de Verão, acabam-se as tardes de trabalho para muita gente. O calor desertifica. Encontro um casal de ingleses que se sentam diante da catedral estupefactos. Lamentamos babelicamente a sesta espanhola. Fotografamos a quietude e sorrimos com pena de nós mesmos. Sentimo-nos esquisitos.

Foi a senhora inglesa quem se rebelou e disse que seguramente aquilo animaria para o entardecer. Haveria de ser bonito de se ver. Eu, que ia para falar na feira do livro local, quis acreditar nisso até para me sentir motivado. Deambulei um pouco mais, meti-me na Plaza Mayor, os cafés abriam para os raros forasteiros, pedi um gelado caseiro de caramelo, divino, que me fez uma companhia quase falante, quase amante, e esperei.

A ressurreição da cidade é um sangue que acode por todas as ruas. Um fluxo crescente de cor e sorrisos, o ruído aumentando, sempre falando uma oitava acima numa alegria espanhola que os portugueses têm dificuldade de entender. A feira do livro abre às seis. A praça fica apinhada. Sinto uma vontade grande de cumprimentar quem vem. Regozijo com a existência de todas as pessoas. O casal inglês apareceu igualmente maravilhado. A senhora comentava que os plasentinos estiveram sempre ali. Talvez nos perscrutassem por detrás das janelas de portadas fechadas. Talvez nos escolhessem para uma resistência maior. A verdade é que nos recebem lindamente.

Ainda me sentei num banco ao centro da praça, a medir a sombra, com um livro da Periferica. A capa vermelha estava como ser fremente nas minhas mãos. Lia e escutava o ruído, algumas crianças atropelavam-se nos meus pés, faziam festa. Lia e escutava o ruído. A cidade recomeçara melhor do que antes.

Têm dois dias cada dia espanhol. Um para a sagração da manhã, outro para o levantamento da noite. É tão democrática a noite, tão cheia de conversas e risos, que nos parece esperto que hajam inventado este modo de cortar o tempo. Afinal, não é de abandono nenhum que se trata. É antes uma forma de retemperar para o regozijo, um certo gesto de alegria que se garante para o convívio. Com a voz invariavelmente uma oitava acima, com ganas. Não entramos nos monumentos mas sabemos bem que a monumentalidade dos lugares, se existir, vem do povo. O monumental povo espanhol, o monumental povo plasentino, ofusca a fronte alta da sua catedral. A pedra é morena porque disfarça assim o embaraço.

Já o sabia há muito. Viajamos sempre pela razão das pessoas. Amamos os lugares pela razão das pessoas.

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