Um caminho para ser filho de Cohen

Lifeboat, novo álbum de Mazgani, mostra os bastidores da fábrica de canções do luso-iraniano. Ao cantar Chavela Vargas, Elvis Presley, PJ Harvey ou Leonard Cohen, gente que impede que o céu nos caia em cima, diz-nos de que matéria se faz a sua música.

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Rita Carmo

Da última vez que Shahryar Mazgani gravara um álbum tinha-se enfiado na boca do lobo. Acontece que o lobo, armado de um finíssimo cavalheirismo britânico, optou por não cerrar os dentes e não o abocanhar. E ao invés de Mazgani ter sido dado como desaparecido enquanto escritor de canções, de ter visto a sua auto-estima completamente estraçalhada ao meter-se com dois grandes da música áspera feita com guitarras, John Parish e (o australiano) Mick Harvey, surpreendeu-se por vir de Inglaterra intacto, sem um único arranhão. Na verdade, regressou até munido de uma mui saudável desfaçatez. “O temor reverencial que tinha quando fui para lá”, diz ao Ípsilon sobre Common Ground (2013), “ajudou-me agora a enfrentar o temor de cantar Leonard Cohen ou Chavela Vargas. Senti que teria autoridade para me apoderar das canções e falhar”.

Agora quer dizer Lifeboat, quer dizer um álbum de versões em que Mazgani interpreta temas do cancioneiro de Cohen, Vargas, Cole Porter, PJ Harvey, Lee Hazlewood, Otis Redding ou Elvis Presley. Foi por ter sobrevivido ao encontro com Parish e Harvey que ganhou “a lata e a afronta” de se meter com seus maiores heróis sem medo de sair chamuscado. Incluindo Cohen, topo da sua hierarquia pessoal, de quem canta If it be your will e de quem diz ser absolutamente certo que não haverá quem cante melhor as suas canções do que o próprio. Mas tal como não pretende competir com uma Chavela Vargas que, lembra, mesmo “velhota, entrevadinha, pequenina, magrinha, com a voz toda queimada, começava a cantar e ficava-se todo eriçado a ouvir”, Mazgani usa Lifeboat como um processo de autoanálise, no sentido em que olha para o interior das suas criações e tenta perceber de que matéria são feitas.

“Crio canções de três acordes e tenho limitações”, reconhece, chamando a atenção para o facto de não pretender colocar-se no mesmo pedestal que reserva a estes autores e intérpretes. “Mas quando se escreve dá-se uma solidão habitada. E nesse espaço onde procuro contar a minha história, talvez sejam estes os vultos que aparecem e me sussurram: ‘Canta enxuto, não faças disto um drama’.” Todos estes nomes, portanto, são as vozes da consciência que o acompanham quando compõe uma canção, aqueles cujas pistas foi seguindo até encontrar a sua própria voz. Até porque desta gente magnífica, revela, só quis de facto roubar “a coragem extrema que o Leonard Cohen e a PJ Harvey têm de ser vulneráveis, de se exporem, de serem honestos”. “Quero ser um cartógrafo, alguém que mapeou um território – vim até aqui assim. Estou a mostrar os meus bastidores e, nesse sentido, também fico vulnerável”, resume.

Além desse caminho percorrido através de autores que fazem de Mazgani um cantor de blues, gospel e country profundamente entranhados na sua música, Lifeboat, como o título prontamente indica, é formado por canções que “são um alimento, são pão”. “E acho que as canções se inscrevem no território das coisas que nos podem salvar, tal como o amor ou a arte”, justifica. “É uma coisa tão imediata, entra tão rapidamente no sangue, transforma de uma forma tão surpreendente os nossos dias… No meu caso, definiu o meu trajecto de vida.”

No bosque escuro
Sem andar de fita métrica a medir a distância a que fica dos originais – suficientemente afastado para não ser cópia, suficientemente próximo para que as canções não se tornem delírios individuais totalmente desligados dos temas que aqui se celebram como bóias de salvamento diárias –, Mazgani consegue, ainda assim, o feito de pegar numa canção por demais presente no imaginário colectivo, como Love me tender, e dar-lhe um tratamento blues/gospel que não o faz desaparecer na sombra de Elvis Presley. Contraria também de forma mais evidente, e totalmente conseguida, Everytime we say goodbye, trocando a desgostosa interpretação soberba de Ella Fitzgerald do tema de Cole Porter por um registo que não se adivinhava poder surgir tão tenso e nervoso – ao jeito do que faria Greg Dulli. A confirmar em palco, dias 14 e 23 de Maio, na discoteca Lux (Lisboa) e no Hard Club (Porto).

Apesar de as escolhas terem obedecido a um critério meramente instintivo, Mazgani foi depois percebendo que uma temática tomava forma – “uma urgência, um ardor nas histórias, uma certa violência da distância, da terra incógnita”. “Há sempre uma sombra, um exílio”, completa. “Isso é uma coisa que me interessa imenso.” A violência de que o músico dá conta, acredita, implica da sua parte “ter alguma saúde mental”, caso contrário não se enfiaria naquilo que define como um “bosque escuro”. Bosque escuro porque Mazgani identifica nestes intérpretes, na sua capacidade de criarem “canções pungente e bonitas”, uma predisposição equivalente para amar e para sofrer. Só sofre desabridamente quem sabe amar sem freios. “O que me faz gostar destes autores é esse excesso de amor”, confirma “Imagino-os e gosto de os pensar com vidas muito desprendidas, com a mochila muito leve, sempre prontos para partir, habitando sempre no exílio. São construções de si mesmos.”

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Rita Carmo

Todo este ambiente descrito por Mazgani parece antecipar um perfil desenhado à medida de um imaginário norte-americano. Assim é, e Lifeboat, mais uma vez, não engana quanto à sua filiação. Atraído pela ficção da América, da música à literatura e ao cinema, Mazgani vê “aquela paisagem como propícia a esta temática – é uma escala monstruosa, e é nela que cada um tem de se safar”. Por motivos familiares, vê-se frequentemente cuspido para esta paisagem mítica e anónima, impregnada de ficção. Mesmo que confesse que o seu sonho “era cantar como a Amália”, mesmo que tenha feito uma versão estarrecedora de Balada da esperança, de Adriano Correia de Oliveira, para o álbum Adriano – Aqui e Agora, é na direcção de Leonard Cohen que gravita sempre, convicto de que, tal como na música clássica do Irão (de onde são originários os seus pais), se continuar a empenhar-se humildemente na sua música talvez um dia possa ascender à condição em que vê todos os outros, de Nick Cave a PJ Harvey, e que passa por ser capaz de cantar à altura do que vive no seu dia-a-dia.

Chama-se a isso, diz Mazgani, ser um filho de Cohen. Chegar lá seria pertencer ao grupo de “malta que segura isto, que faz com que o céu não nos caia em cima”. Esses mesmos que canta aqui.

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