O Acordo Ortográfico: rejeitar o absurdo

Considero inaceitável que a Associação de Professores de Português não se pronuncie sobre os malefícios que a adopção desta ortografia tem causado em todos os ciclos de ensino.

Em 1986, as Academias de Brasil e de Portugal elaboraram um projecto que redundou na assinatura oficial de um Acordo, o qual foi alvo de discussão e considerado insensato e, portanto, rejeitado, em 1990. Para tal rejeição serviram de base os pareceres à data elaborados por especialistas (linguistas, gramáticos, filólogos, mas também professores de literatura, escritores, poetas...). Concluiu-se que era grave querer uniformizar a língua.

Como escreveu Vitorino Magalhães Godinho em artigo publicado no Jornal de Letras (n.º 978, de 26 de Março de 2008; artigo diga-se absolutamente ignorado pelo Governo, pelo Presidente da República e pela maioria dos agentes culturais): em 1990 decidiu-se "enterrar sem apelo nem agravo o ruim defunto". Mas volvidos pouco mais de quinze anos, eis que o ruim defundo ressuscitou. Tal sucedeu no mesmo lapso de tempo em que se introduziu para confusão de alunos, pais e professores e lucro de uns quantos teóricos da linguística e editoras escolares a famigerada TLEBS, que, tal como o Acordo Ortográfico, e apesar da contestação, não foi eliminada do ensino do Português. Estes dois factos TLEBS e novo Acordo Ortográfico são sintomáticos da indigência que campeia na educação.

Pois bem, o Acordo. Como professor de Português e de Literatura Portuguesa, considero inaceitável que a Associação de Professores de Português não se pronuncie sobre os malefícios que a adopção desta ortografia tem causado em todos os ciclos de ensino. Tem-se ensinado português da pior forma possível: apadrinhando a corrupção das palavras seja na grafia, seja nas concomitantes dimensões semântica e morfológica e fonética. Insiste-se, ao mesmo tempo, em leccionar a gramática com base numa terminologia equívoca e muitas vezes errada. Este Acordo Ortográfico e a falácia científica que é a TLEBS são a prova provada de que a Escola se transformou, salvo excepções, num campo propício para se exercer a ideologia dos burrocratas, como disse Herberto Helder...

Da escola ao jornalismo, da política à publicidade, os mais diversos dislates gramaticais fariam corar de vergonha governantes conscientes que não temos. A anglicização do nosso idioma é uma das causas que mais concorrem para o actual estado da arte. Perdeu importância a matriz grega e latina da língua e, consequentemente, perdeu-se a capacidade de compreender e apreender a ductilidade e as subtilezas do idioma de Camões. Alguns exemplos bastariam para que a Assembleia da República se dignasse a fazer letra de lei o regresso da ortografia do Acordo de 1940-45. A supressão dos acentos é apenas uma das facetas deste grave e espinhoso problema criado nos gabinetes de quem não pisou nunca a escola portuguesa. No terreno o que temos é uma realidade alarmante que nenhum governante deveria menoscabar: crianças e jovens sem quaisquer hábitos de escrita e de leitura, crianças e jovens vítimas do desemprego a que os pais estão condenados e para quem a escola, mais do que lugar das aprendizagens da língua e das ciências, é hoje, apenas e só, o lugar do massacre dos exames e sua nefasta formatação. Questionemos, pois, o Acordo: Nas palavras esdrúxulas o que justifica a supressão dos acentos? Nas palavras homógrafas, tal omissão do acento leva a erros de leitura, de entoação, e de compreensão da mensagem. Veja-se a frase: "Baudelaire pára para ouvir a fim de pensar [...]" (in M. S. Lourenço, Os Degraus do Parnaso, p.122). Se se eliminar o acento, como leremos? Há casos em que o acento esclarece quanto à abertura da vogal anterior ou quanto à distinção entre verbos e preposições. Uma coisa é "fôrma" (pão), outra é "forma" (sapato); "bésta" (arma medieval) não é "besta" (animal). (Note-se que a ausência de acentos nestas palavras foi solucionada em dicionários esclarecendo a vocalização, o que em todo o caso pode fazer incorrer os falantes em erros de pronúncia).

Um acordo bestial foi o que se conseguiu. A recepção deste Acordo merece o nosso escárnio e repúdio, sob pena de vivermos uma recessão linguística que dificilmente poderemos resolver. Veja-se que, sem acentuação, uma coisa é "pôr" e outra é "por". Por isso mesmo é preciso pôr fim à degenerescência civilizacional que grassa por este país, laboratório das experiências mais alucinantes (e alucinadas) do tecno-fascismo.

Veja-se, já agora, o uso do hífen. A sua supressão dificulta a compreensão do sentido global de lexemas. José de Almeida Moura vê bem a ilogicidade da norma defendida pelo NGDLP (Novo Grande Dicionário da Língua Portuguesa). Diz o gramático o seguinte: "Um exemplo basta para provar que o Acordo de 1990 veio complicar o que, embora complexo, se tornava claro e produtivo, porque havia regras precisas a normalizar a ortografia. A doutrina da Base XIX do texto de 1945, por motivo de clareza ou expressividade gráfica ou por ser preciso evitar má leitura manda que se empregue o hífen nos 'compostos formados com o prefixo co, quando este tem o sentido de 'a par' e o segundo elemento tem vida autónoma'." Afirma ainda José de Almeida Moura, autor do ensaio A Consolidação da Ortografia do Português Homenagem ao Velho do Restelo: "O Novo Acordo forjou 'três espécies de grafias' com esse prefixo: coautor, corréu [...] co-utente e co-herdeiro." Pondo à vista as incongruências de alguns especialistas (Malaca, sobretudo), Almeida Moura demonstra que, no caso do hífen, a aglutinação do prefixo a formas seguidas da consoante muda [h] propende à confusão: ora serve aglutinar-se como em corréu ("aglutinados em geral", diz o AO) como se abre excepção (escrevo com p, como se lê). Consulte-se o parecer de Almeida Moura e verifique-se que o Acordo de 1990 defende formas como "coocorrente", "micro-onda", "antirreligioso", "mandachuva" ("manda-chuva" no NGDLP) e "guarda-chuva", "paraquedas" ("para quedas" no NGDLP) e "conta-gotas", "hão-no" e "hão de". Outro exemplo: no Atual (manual de instruções rápidas do Acordo) grafa-se "lusoafricano" e no Acordo escreve-se "luso-brasileiro" e "afro-asiático" (Base XV,1). Podíamos não parar. As contradições são manifestas. Na verdade, temos de concordar com José de Almeida Moura: "Este Acordo é o problema, por falta de conhecimento [da língua] e pela adulteração radical dos seus sistemas ortográficos, que reflectem traços culturais próprios da história dos povos que a falam e escrevem."

A corrupção está, de facto, em curso: vai sendo frequente verem-se lexemas deste género: "eurosiático", "geoistória", "gastrenterite", "protoistória". E a questão é que a supressão das consoantes mudas acaba por conduzir a grafias como "Istória", já que os alunos foram levados a simplificar de tal modo que tudo, na grafia, na morfologia e na sintaxe passou a ser relativo. Irrevogável, por exemplo, já não quer dizer irrevogável... De facto, se se escreve como se fala, qual o problema de escangalhar a expressão escrita? Mais: Não é pedagógico aceitar-se que haja dualidade de grafia em situações como "Português" (disciplina escolar e etnónimo) e "português" (língua). E que dizer da generalização de minúsculas em lexemas que designam povos, dias da semana, estações do ano? Também quanto às consoantes duplas generalizou-se o absurdo: "interceptar", "acepção", "recepção", "receptor" perdem o p que leva à abertura da vogal anterior e, lendo-se mal, o próprio sentido dos lexemas se desvanece... O que é, pergunto, um recetor? Na oralidade como se lerão receção e recessão?... Pode ler-se em alguns casos a consoante dita muda, mas a grafia da dupla consoante evita que o aluno escreva e diga "intercessão" (assim mesmo escrito) ou "intercetar"… Alguém que escreva no currículo que está "ato" para desempenhar determinada função não estará "apto", provavelmente, a escrever uma "ata" (quero dizer: "acta"). Como desatar os nós desta camisa de forças ortográfica? Como será quando, nos Exames Nacionais de 4.º, 6.º, 9.º e 12.º anos, os alunos se virem confrontados com a oscilação de grafia no próprio enunciado dessas provas?

Em rigor, como lembra José de Almeida Moura, no parecer publicado no Boletim n.º 35 / 2008 da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, e a que nos reportamos, citando Mariana Yaguello: "Uma reforma no sentido de uma ortografia fonética poria o problema da escolha de uma norma, escolha essa que beneficiaria os grupos dominantes. É esse um dos principais obstáculos a uma reforma ortográfica."

Professor e crítico literário

 

P.S.: Por lapso não imputável ao autor, este artigo surgiu inicialmente com o título "rejeitar o abuso" quando, na verdade, era "rejeitar o absurdo". Foi já feita a devida correcção.

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