O dr. Abouharb volta ao trabalho, Cameron e Miliband não sabem

Em Kensington, bairro dos super-ricos de Londres, há um filho de imigrantes sírios a fazer frente a uma lady. Mas nesta luta o trabalhista não vai ganhar à conservadora. As surpresas estão reservadas para a batalha entre os dois homens que querem ser primeiro-ministro do Reino Unido.

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Kensington sempre foi um feudo seguro dos conservadores Stefan Wermuth /Reuters

A voluntária do Partido Conservador à porta do Town Hall de Kensington conta espingardas. A cada pessoa que entra, pede o número de eleitor. “Quando andámos a fazer campanha, porta a porta, registámos todos aqueles que iriam votar em nós. Estou a conferir se vêm mesmo votar. Se dentro de umas horas não aparecerem, vamos telefonar-lhes e pedir-lhes que venham. Todos os votos são necessários”, diz a voluntária, emblema azul do partido ao peito, porque é permitido, mas sem nomes ou fotografias de candidatos, o que é proibido.

Às sete da manhã, quando as secções de voto abriram, formou-se uma pequena fila. No Reino Unido, as legislativas realizam-se em dia de semana, muitos quiseram votar antes de irem para o trabalho. “Está a chegar muita gente, está muito bom”, diz a voluntária. Há cinco anos, votaram 29,9 milhões de pessoas, 65% dos eleitores registados; as previsões diziam que, este ano, a afluência às urnas podia ser maior.

Em menos de meia hora, entraram nesta assembleia de voto do bairro londrino mais de 40 pessoas. Bill, que está “na casa dos 60 anos”, também comenta a afluência, evitando responder à pergunta do dia – em quem votou. “Aqui neste bairro o grande problema são os impostos sobre a habitação que os trabalhistas criaram e prometem aumentar. Não preciso de dizer mais nada, pois não?”

Bill votou em Victoria Borwick, a candidata conservadora que, diziam todas as sondagens, ganharia um dos 650 lugares do Parlamento em Westminster que os partidos disputaram nas eleições desta quinta-feira. Kensington é um feudo conservador. Tem sido um lugar seguro para o partido, apesar da falta de sorte do partido com os candidatos de Kensington.

Borwick entrou na campanha para tomar o lugar do anterior deputado, Malcolm Rifkind, forçado a desistir da corrida quando foi apanhado por um jornalista a propor fazer tráfico de influência. Rifkind, por sua vez, sucedeu a um colega que morreu pouco depois de ser eleito, e este substituíra outro que perdeu o lugar de deputado no dia em que foi encontrado perdido de bêbado e caído no chão numa rua de Londres. Também houve Michael Portillo, antigo secretário da Defesa, que, ao perder a corrida pela liderança do Partido Conservador, em 2001, abandonou Kensington e a política.

Os jornais londrinos desejaram a lady Borwick – é aristocrata – melhor sorte do que tiveram os seus antecessores, explicaram que é uma mulher muito influente no circuito mais elitista dos conservadores, mas sublinharam que não é grande coisa como política, como ficou provado na campanha.

Apesar de o lugar ser seguro, lady Borwick teve de se esforçar para fazer uma campanha parecida com a do seu principal adversário, o trabalhista Rod Abouharb, que foi uma surpresa para os vizinhos deste bairro.

Recreio dos ricos

Kensington é o bairro mais caro de Londres, um apartamento do tamanho de um iPad custa mais de 500 libras por semana (The Independent) e ali vivem os muitos ricos e os novos muito ricos – chefs famosos (como Gordon Ramsey) e futebolistas (como David Beckham). David Cameron também tem casa lá.

No início de Abril, antes de todos os outros candidatos, o dr. Abouharb começou a bater às portas dos eleitores de Kensington. O que o preço da habitação está a fazer ao bairro foi o centro da sua campanha. Nas semanas que antecederam a votação, o trabalhista publicou um estudo a revelar que é preciso um rendimento anual de 250 mil libras (quase 338 mil euros) para comprar uma casa em Kensington. O documento denuncia também que seis mil casas do bairro estão registadas em nome de empresas com sede em paraísos fiscais. Kensington, disse Abouharb aos eleitores, corre o risco de se tornar num gueto de elite, deixando de ser um verdadeiro bairro de vizinhos.

O tema é pertinente para “os vizinhos” que, aos jornalistas, se queixaram dos novos residentes – queixaram-se de Bechkam, que esbarrou com a oposição da associação de moradores quando quis fazer obras na sua nova mansão, por causa do barulho e de uma rampa para automóveis que queria construir e que não correspondia às características do edifício. Alguns prometeram votar no candidato trabalhista e, para surpresa de muitos, Abouharb começou a subir nas sondagens.

A segunda frente de batalha do candidato foi a desigualdade, que num lugar como Kensington é mais visível do que em bairros com maior diversidade. Apesar de ser “o recreio dos ricos” – os restaurantes mais caros e os clubes mais exclusivos são lá –, Kensington sempre teve bolsas de habitação social e áreas de residência de remediados (o grupo a que o primeiro-ministro, David Cameron, chamou a “espremida classe média” e que as estatísticas dizem estar cada vez mais pobre, com menos poder de compra).

“A situação é francamente chocante em Kensington. A desigualdade é cada vez maior e mais visível. Temos uma riqueza extrema de um lado e a pobreza a aumentar do outro. Isto não pode ser tolerado por uma sociedade civilizada”, disse o candidato trabalhista, que não hesitou em usar a sua história pessoal para seduzir os eleitores. Abouharb é filho de imigrantes sírios e foi criado apenas pela mãe que, depois do divórcio, se desdobrou em empregos para poder mandar o filho para universidade. É por isso que Abouharb faz questão de se apresentar como “dr. Abouharb”.

Disseram os analistas políticos que, este ano, Abouharb não deveria ser eleito deputado. Mas dentro de cinco ou dez anos, se a desigualdade aumentar e o eleitorado conservador continuar a abandonar o bairro (por causa dos preços), Kensignton pode deixar de ser uma mancha azul no mapa de Londres e tornar-se um bairro "oscilante", ou seja, que pode eleger um deputado de outro partido que não o habitual. Nessa altura, Abouharb ou um candidato como ele substituirá lady Borwick.

Recado da rainha

Por enquanto, o candidato trabalhista esperava retomar, já nesta sexta-feira, o seu trabalho – o filho de imigrantes sírios é professor de Relações Internacionais no Departamento de Política da London Global University.

Para outros candidatos a derrota terá consequências diferentes. Cameron pode perder o emprego. E também o líder trabalhista, Ed Miliband.

O peso maior está sobre Cameron. Destas eleições não sairá uma maioria e tanto o conservador como o trabalhista se mostraram dispostos a tentar formar um governo. E Cameron acusou o nervosismo, ao votar, logo de manhã. “Não façam nada de que arrependam”, disse aos eleitores.

Se não conseguir dar o governo aos conservadores, Cameron não “sobreviverá”. E Boris Johnson, o presidente da câmara de Londres, já se perfilou como candidato ao lugar de líder.

O líder conservador pode precisar de fazer mais ginástica nas alianças – uma possível coligação com os liberais democratas e ainda o apoio dos unionistas democratas da Irlanda do Norte e, eventualmente, do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP, xenófobo e anti-Europa). Partidos com interesses difíceis de conciliar.

Para travar a tentação de Cameron se precipitar e tentar forçar um governo minoritário antes de conseguir apoios suficientes para ser aprovado pelo Parlamento, o Palácio de Buckingham passou ao The Times a informação de que a rainha, Isabel II, pode quebrar a sua neutralidade política e intervir – não foi dito exactamente como, eventualmente rejeitando o nome proposto para primeiro-ministro. O objectivo, disseram as fontes do Times, é que não seja formado um governo cuja legitimidade possa se questionada.

Miliband – votou ainda não eram oito da manhã –, por seu lado, precisa do polémico apoio dos nacionalistas escoceses (defendem a separação do país do Reino Unido), do Verde, do partido do País de Gales e de independentes, todos favoráveis a uma visão socialista de governo.

No campo trabalhista não se fala ainda de um substituto para Miliband, em caso de derrota. As projecções que vão ser feitas mal as urnas encerrem, às dez da noite, podem dar uma indicação do que acontecerá a seguir. Ou não. Se o empate se mantiver no fim da contagem dos votos, que se prevê termine a meio da madrugada de sexta-feira, a composição do próximo governo britânico poderá ficar tão incerta como no momento em que as urnas abriram.

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