Porto Vintage Waterloo atinge preço recorde num leilão em Londres

Porto Vintage 1815 da Ferreira arrematado esta quinta-feira por 6800 euros. O vencedor do leilão é um auditor financeiro londrino que abre 400 garrafas por ano de vinho do Porto antigo. O produto da venda será entregue à Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica

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Às 20h10 da tarde de quinta-feira, Fernando Guedes, o presidente do Conselho de Administração da Sogrape, subiu a um pequeno palco improvisado numa sala da Torre de Londres e anunciou com solenidade: “O momento chegou”. Em breve, uma garrafa de vinho do Porto Vintage de 1815 deixaria de vez a penumbra das caves de Vila Nova de Gaia onde envelheceu durante dois séculos e passaria para as mãos de um novo dono.

Mesmo no sofisticado mundo dos leilões de vinho londrino é raro haver uma garrafa de uma colheita com tantos anos de vida, pelo que o anúncio da licitação do 1815 tinha atraído umas dezenas de investidores, coleccionadores ou simplesmente apaixonados pelo vinho do Porto. O facto de o produto da venda ser destinado à Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica, uma doença degenerativa que afecta Salvador Guedes, o ex-presidente do Conselho de Administração da Sogrape, à qual a Ferreira pertence, juntava a estas categorias de interessados a presença dos frequentadores habituais de leilões de benemerência. Um auditor financeiro britânico seria o vencedor.

O Vintage de 1815, que na memória do vinho do Porto é conhecido como Vintage Waterloo em referência à batalha que pôs termo à hegemonia de Napoleão na Europa, é um dos mais antigos vinhos do Porto pensados para evoluir em garrafa, que nessa época era ainda uma novidade com menos de 50 anos.

Foi criado quando Dona Antónia Adelaide Ferreira tinha quatro anos de idade, numa época em que o rei D. João VI continuava no Brasil em fuga das invasões francesas. Não se sabe em que quintas foi produzido, embora Luís Sottomayor, o enólogo-chefe da Ferreira suspeite que não venha da opulenta Quinta do Vesúvio, que na época estava nas mãos da família da “ferreirinha” mas sim de vinhas do Baixo Corgo, onde os teores de acidez natural e de estrutura de taninos produzem vinhos com especial aptidão para a longevidade. Não se sabe por isso com que castas foi vinificado, embora o seu músculo deva ter exigido longas pisas a pé em lagares. Não se sabe também quando foi engarrafado.

A sua longa vida foi sendo acompanhada de 20 em 20 ou de 30 em 30 anos, quando é necessário proceder à renovação das suas rolhas que o protegem da oxidação. Numa das últimas provas que se fez com este vinho, nos 200 anos do nascimento de Dona Antónia, esse Porto bicentenário apresentava um balanço admirável, harmonia e profundidade de boca. O leiloeiro da Sotheby’s que organizou a operação na Torre de Londres garantiu a sua excelência aos presentes, lembrando que esse Vintage deixava no palato uma intensa sensação de especiarias. De resto, o vinho leiloado era acompanhado por um certificado de autenticidade da Ferreira.

O preço-base anunciado pelo leiloeiro da Sotheby’s situou-se nas 3800 libras, as ordens sucederam-se e rapidamente o valor inicial tinha subido para as 4800 libras até que, cerca de cinco minutos depois do início do leilão, o preço final e vencedor do concurso tinham ficado determinados. J., um auditor bancário que vive em Londres e que pediu para manter o anonimato, era o novo dono do Ferreira de 1815. Para poder integrar o restrito grupo de proprietários de vinhos do século XIX teve de pagar 5000 libras, cerca de 6800 euros.

O destino do leilão era imprevisível, dada a escassa história de operações desta natureza com vinhos tão antigos, mas, no final, a administração da Ferreira não escondia a satisfação pelos valores obtidos. Não há na memória um leilão de vinho do Porto onde se tenha chegado a este nível de preços. O que ficou mais próximo aconteceu há dez anos na Christie’s, quando um Noval Nacional de 1931, considerado pela imprensa especializada internacional um dos dois melhores vinhos do século XX, se aproximou da barreira das 5000 libras.

J. não escondia a sua satisfação. Tinha ido à Torre de Londres com um propósito e conseguira cumprir a sua missão. “Se o preço tivesse sido mais alto, eu teria apostado”, reconhece. Há anos que os vinhos do Porto antigos são para ele uma paixão na qual investe uma boa parte da sua fortuna – ironiza até que a sua colecção de Vintage vale mais do que a casa onde os guarda. Numa viagem a Lisboa, há cerca de oito anos, comprou na Garrafeira Nacional um raro exemplar do Ferreira de 1815 (por um preço mais barato do que o do leilão, nota) e bebeu-o com amigos num jantar em Seattle, nos Estados Unidos. O que provou deixou-o impressionado. Para lá da experiência sensorial, atrai-o a convocação da memória que os Porto de outras gerações suscita.

“Quando abrimos um Porto antigo podemos reflectir sobre o nosso mundo”, diz. O caso de um Porto bicentenário convoca-o para um tempo onde “não havia electricidade, quando o vinho demorava dias ou semanas a viajar do Douro [que considera “uma belíssima parte do mundo”] até Vila Nova de Gaia”. Normalmente, abre com os seus amigos e a família umas 400 garrafas de Porto Vintage por ano, o que o obriga a manter um razoável stock de vinho e a acumular informação sobre cotações, notas de prova e a proceder a pesquisas de mercado para saber que oportunidades existem para acumular novas raridades. Entre o seu património de vinho do Porto, há outros Vintage da Ferreira do século XIX, mas para sua “infelicidade” não tem nenhum Noval Nacional de 1931, um vinho icónico para os coleccionadores e apreciadores pela sua raridade e, ao que dizem, pela sua extraordinária qualidade e aptidão para resistir ao tempo.

Nos leilões há códigos de representação que são facilmente percebidos pelos participantes e poderá ter ocorrido na sessão de quinta-feira um desses casos em que cedo se percebeu quem estava determinado a ganhar a disputa pelo 1815, custasse o que custasse. Flávio Alves, um médico que trabalha no Porto, um dos maiores e mais criteriosos coleccionadores e apreciadores de vinho do Porto do país, foi a Londres de propósito para disputar o 1815, mas ficou-se pelas 4500 libras. Considera que o valor da venda “é muito bom”, porque pelo seu conhecimento e experiência já passaram muitos leilões de garrafas raras de anos e marcas de qualidade que ficaram abaixo dos 2500 euros por garrafa. O que Flávio Alves mais lamenta foi não ter ido mais longe na disputa do primeiro lote de vinhos em leilão – um pack de seis Vintage da Ferreira, incluindo um 1947 de garrafa de 1.5 litros (o formato magnum) e um 1952, ano no qual a empresa foi das raras empresas a declarar a categoria Vintage. Esse lote foi adquirido por 2050 euros.

Com a venda desta garrafa, ficam a sobrar nas caves da Ferreira em Gaia ainda 49 exemplares do 1815 para lá de cerca de 12 mil garrafas de Porto raros. Fernando Guedes, porém, avisa que mais nenhuma será vendida ou leiloada nesta geração. “Foi essa a atitude de Dona Antónia e nós queremos continuá-la”, explica. Quando morreu, em 1896, a Ferreirinha deixou para os seus herdeiros 24 quintas no Douro, 13 mil pipas de vinho e “uma preciosa frasqueira com milhares de garrafas das mais consagradas colheitas, como as de 1815, 1820, 1834 ou 1847”, lê-se na biografia de D. Antónia escrita pelo historiador Gaspar Martins Pereira e Maria Luísa Olazabal. Se a promessa for mantida, será necessário esperar pela chegada ao controlo da Sogrape da quarta geração da família Guedes, que actualmente é representada por Mafalda, filha de Salvador Guedes, o homem que liderou a transformação da empresa num grupo global com propriedades e marcas de vinho em Espanha, na Argentina, no Chile e na Nova Zelândia que factura anualmente perto de 200 milhões de euros.

Mas se os 1815 ficam reservados para a posteridade, Fernando Guedes admite que outros vinhos raros da Ferreira (ou da Sandeman, ou da Offley, empresas que integram o universo Sogrape) possam ser disponibilizados para operações idênticas. “Este tipo de acontecimentos são muito importantes para a imagem do vinho do Porto”, diz. Porque não muitos vinhos do mundo capazes de resistir a provas do tempo tão longas como os grandes Vintage ou os grandes Colheita (a diferença entre uns e outros é que os Vintage envelhecem em garrafa e os Colheita em cascos de madeira). Neste campeonato dos vinhos muito velhos, Portugal dispõe ainda de um vinho cuja longevidade pode ser actualmente atestada até ao final do século XVIII: os Madeira.

Para se ter uma noção da raridade do 1815 convém notar que o sistema de armazenamento do vinho em garrafa começou a ser desenvolvido apenas no final do século XVIII. A Sandeman produziu o seu primeiro Vintage na vindima de 1790, e a estreia terá sido de tal forma bem-sucedida que, em 1809, George Sandeman confessava ao duque de Wellington, o vencedor da batalha de Waterloo, que esse teria sido o melhor vinho que bebera. Depois de 1810 aumentaram os registos de declarações: a Croft é a primeira empresa a ser mencionada num leilão de Vintage promovido pela Christie’s, em 1810, e um Warre de 1805 sucede-lhe, num leilão realizado em Junho de 1813. Neste contexto, o Ferreira de 1815 é um pioneiro desse novo mundo dos vinhos produzidos para crescer na garrafa. Durante o século XIX, as datas das grandes colheitas foram associadas a eventos históricos – o 1815 é Vintage Waterloo, o 1887 o Vintage Queen Victoria Jubilee (comemorativo dos 50 anos do reinado da rainha Vitória), por exemplo. Uma associação que torna este 1815 numa raridade ainda mais desejada pelos especialistas.

J., o auditor, conhece destas histórias de traz para a frente. Por isso, este leilão foi para ele tão importante. Agora, não sabe o que fazer. Talvez o Ferreira seja apreciado no próximo ano. Ou talvez ele resista à tentação e o beba quando fizer 60 anos. Ou seja, daqui a uma década. De qualquer modo, como é apanágio dos verdadeiros coleccionadores e apreciadores, aquele vinho já é dele e foi para ter esse prazer da posse que se dispôs a gastar uma pequena fortuna para a maioria dos mortais.

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O Vintage de 1815 foi criado quando Dona Antónia Adelaide Ferreira tinha quatro anos de idade, numa época em que o rei D. João VI continuava no Brasil em fuga das invasões francesas.

  • O jornalista viajou a convite da Porto Ferreira
  • Actualizado às 18h05
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