Direito de autor aproxima França e Alemanha

A França e a Alemanha têm conseguido manter elevados níveis de cobrança e uma produção legislativa que tem o mérito de valorizar a criação cultural e os seus protagonistas.

Não é comum o direito de autor ser uma plataforma de entendimento e diálogo entre Estados, porque se trata de uma matéria que se encontra profundamente ligada aos ordenamentos jurídicos nacionais. No entanto, foi isso que aconteceu em 31 de Março passado entre a França e a Alemanha que, num inovador documento conjunto, sublinharam “o papel fundamental que desempenha o direito de autor para estimular a diversidade cultural, a criatividade e a inovação; o direito de autor deve continuar a desempenhar esta missão na sociedade da informação digital e do conhecimento”.

Os autores do documento sublinham que, neste contexto, “o direito de autor constitui um elemento importante, mesmo que não seja o único, do quadro jurídico aplicável à produção, distribuição e utilização dos conteúdos culturais”.

A França e a Alemanha, numa Europa que procura caminhos que lhe permitam resistir à concorrência de outros continentes, economias e culturas, têm conseguido, não obstante o corrosivo efeito da crise estrutural que tanto afecta as nacionalidades e os povos, manter elevados níveis de cobrança e uma produção legislativa que, mesmo em tempo de nítido crescimento do universo digital, tem o mérito de valorizar a criação cultural e os protagonistas desse processo criador.

Nos organismos transnacionais em que Portugal está representado é visível a preocupação dos dirigentes de sociedades de autores, neste caso das maiores do mundo (caso da SACEM de França e da Gema da Alemanha), de manterem um diálogo aberto que consensualize posições e permita abrir novos caminhos de negociação, designadamente com a Comissão Europeia, onde o direito de autor foi confinado à esfera do digital como se não existisse produção e direitos a defender fora dessa esfera, que é cada vez mais a da música e do audiovisual, embora abarque também as restantes áreas de criação e produção.

Sendo a França o berço histórico do direito de autor, nunca deixou de defender posições firmes nesta matéria, mesmo reconhecendo que é preciso encontrar modelos de flexibilização e diálogo que ajustem a temática do direito de autor às novas realidades tecnológicas e legislativas. Após o trágico período da Segunda Guerra Mundial, em que o nazismo e a guerra praticamente liquidaram o direito de autor como conquista de civilização, as décadas que se seguiram têm sido de reaproximação e tendencial convergência de esforços. E é importante que assim aconteça, porque as estruturas supranacionais aprendem a temer e a respeitar quem concentra mais força e poder, ainda que as matérias em debate possam atravessar um período de fragilidade na relação com o mercado e com os decisores políticos.

Os autores desta declaração governamental franco-alemã proclamam que “o direito de autor é relevante não só no domínio da propriedade e da actividade económica, mas também no plano da cultura e da liberdade de expressão”. Esta declaração adquire reforçada importância num momento em que várias formas de fundamentalismo e radicalismo ideológico e religioso atingem perigosamente a liberdade dos criadores, mas também o património histórico construído ao longo de milénios de actividade civilizacional. Após um século atingido por duas guerras mundiais que tiraram a vida a mais de 80 milhões de pessoas em vários continentes, colocar a cultura e a liberdade de expressão como preocupações e prioridades estratégicas é um sinal de boa saúde intelectual e de uma justa visão da relação humana com as coisas da vida e da cultura.

“A diversidade cultural, compreendendo a linguística e regional, representa para a União Europeia um dos seus principais pilares e como tal deverá ser preservada. Rejeitamos as regulamentações que ponham em perigo este potencial para a cultura. Quem observar o direito de autor apenas como um obstáculo técnico no caminho da concretização do mercado único digital não faz justiça à sua efectiva importância”, prossegue o documento.

Os autores franceses e alemães desta relevante tomada de posição, sem limitarem a importância da realidade económica e jurídica resultante do alargamento da esfera digital, consideram que “a sociedade civil na Europa obterá um imenso benefício com a melhoria da distribuição e da disponibilidade de conteúdos de alta qualidade. O mais fácil acesso às obras beneficiará igualmente, e esta não é uma vantagem menor, a compreensão entre diferentes culturas no interior da Europa, o que é uma base importante para se construir uma maior coesão no seio da União Europeia. Uma atenção particular deve ser assegurada à disponibilidade de conteúdos de qualidade para a educação e para a ciência”. E acentuam:

“O interesse global da sociedade em assegurar este acesso às obras científicas e educativas, bem como soluções duráveis para a sua criação e difusão. Uma remuneração apropriada daqueles que estão envolvidos nessas actividades criativas deve sempre ser garantida.”

Além de mostrar uma forte base de entendimento de dois países com economias e vidas culturais fortes no seio de uma Europa em transformação profunda, esta declaração francesa e alemã sublinha a importância da produção autoral para o desenvolvimento científico e educativo de sociedades que defendem os valores e as regras do convívio e da convergência democrática. É possível e legítimo afirmar-se que estas declarações, a propósito do direito de autor, envolvem princípios e vontades fundamentais para a própria preservação da paz e do diálogo entre povos e culturas, desígnio de cumprimento problemático quando os criadores e os seus direitos não são estruturalmente entendidos e salvaguardados.

Afirma ainda esta declaração, que teve uma difusão internacional menor do que o seu conteúdo requeria, que “a França e a Alemanha têm posto em prática esta legislação com grande sucesso no mundo analógico”, realçando a importância da cópia privada que, em Portugal, teve há poucos dias a sua lei vetada pelo Presidente da República, cabendo a última palavra ao Parlamento que assegurou a sua validade democrática.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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