França aprova lei de segurança comparada ao Patriot Act americano

Assembleia Nacional aprova por esmagadora maioria uma proposta de lei que dá mais poderes à polícia e aos serviços secretos, contestada por empresas, juízes e jornalistas.

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O primeiro-ministro garante que a lei destina-se apenas ao combate ao terrorismo ALAIN JOCARD/AFP

Com pouca oposição nas ruas e quase nenhuma no Parlamento, os deputados franceses deram nesta terça-feira o primeiro passo para dotarem o país de um sistema de vigilância electrónica semelhante ao que foi aprovado nos Estados Unidos após o 11 de Setembro de 2001.

A controversa proposta de lei começou a ser trabalhada muito antes dos ataques em Paris contra o jornal satírico Charlie Hebdo e uma mercearia kosher, em Janeiro, mas foi finalizada e discutida sob pressão desses actos terroristas, que fizeram 20 mortos incluindo os três atacantes.

A ideia de que o país precisa de adaptar as suas leis de vigilância electrónica ao século XXI é mais ou menos consensual – as leis em vigor remontam a 1991, uma época em que a Internet era ainda um mistério para a esmagadora maioria da população mundial e os smartphones não passavam de adereços em filmes de ficção científica.

Mas os críticos da proposta aprovada esta terça-feira na câmara baixa do parlamento francês, a Assembleia Nacional (e que será votada no Senado até ao final do mês), dizem que as alterações levam o país do 8 para o 80, abrindo a porta à invasão da privacidade de cidadãos que não têm nenhuma relação com o terrorismo ou qualquer outra actividade criminosa.

De acordo com a proposta de lei, também conhecida como o "Patriot Act francês" (numa referência à polémica lei pós-11 de Setembro nos EUA, que permitiu a criação dos programas de vigilância expostos no Verão de 2013 pelo antigo analista Edward Snowden), a polícia e os serviços secretos franceses podem implantar aparelhos de vigilância em habitações, tirar fotografias ou interceptar conversas telefónicas no âmbito de uma investigação a um suspeito sem que seja necessário pedir autorização a um juiz.

Para supervisionar as acções dos serviços secretos será criado um painel independente, cujas decisões não serão vinculativas – em última análise, a palavra final será sempre do primeiro-ministro.

O chefe do Governo, Manuel Valls, garante que a lei "centra-se unicamente na prevenção de ameaças graves", e considera que a comparação com o Patriot Act norte-americano é "uma mentira irresponsável".

Valls salienta que os serviços secretos só poderão interceptar e armazenar os chamados "metadados" (informações como a duração de uma chamada telefónica, a localização ou os números de telefone envolvidos, mas não o que é dito pelos interlocutores), algo que os críticos da lei vêem como fraco consolo – o cruzamento de todos estes pedaços de informação podem oferecer a quem os analisa uma perspectiva geral das actividades de quem é vigiado, podendo mesmo ser tão ou mais importantes do que uma conversa ou um texto escrito num email, por exemplo.

Os críticos dizem também que a proposta de lei está formulada em termos vagos, que podem levar à invasão da privacidade de jornalistas e activistas a partir do momento em que estes contactem com um suspeito numa investigação – para além da "prevenção do terrorismo", o documento dá mais poderes à polícia e aos serviços secretos em áreas como "importantes interesses de política externa", "interesses industriais e científicos" ou a ainda mais vaga "prevenção de ataques contra a forma republicana das instituições".

Uma das propostas mais polémicas é a autorização para que a polícia e os serviços secretos possam aceder aos servidores das empresas que fornecem acesso à Internet, através de um algoritmo secreto preparado para filtrar as palavras-chave definidas pelas autoridades. Este acesso directo aos servidores é visto nos EUA como uma violação muito grave; empresas como a Google ou Facebook sempre negaram a acusação de que abrem os seus servidores à NSA, admitindo apenas que fornecem dados aos serviços secretos ao abrigo das leis em vigor no país, e sempre depois de um pedido aprovado por um tribunal cujas decisões são mantidas em segredo, o Foreign Intelligence Surveillance Court.

Apoio após ataques de Janeiro
A esmagadora maioria dos deputados franceses votou a favor, mas as poucas vozes discordantes nos dois principais partidos dizem temer que a França esteja a trilhar um caminho perigoso. Pierre Lellouche, da UMP, disse mesmo que a proposta de lei, da forma como está redigida, poderia ser usada contra os estudantes do Maio de 68; para o socialista Pouria Amirshahi, a comoção provocada pelos ataques de Janeiro fez com que fosse impossível debater o tema com alguma frieza: "Hoje, quem exprime a mínima reserva em relação ao texto, é praticamente acusado de cumplicidade com o terrorismo."

Apesar das críticas de organizações de defesa das liberdades cívicas, de empresas que fornecem acesso à Internet, de juízes e de jornalistas, a votação na Assembleia Nacional reflecte o que as sondagens aos cidadãos vinham mostrando na sequência dos atentados de Janeiro em Paris: dos 524 deputados que votaram, 438 disseram "sim" e apenas 86 reprovaram a proposta, sendo que as críticas mais fortes partiram das formações à esquerda do Partido Socialista do primeiro-ministro Manuel Valls e à direita da UMP de Nicolas Sarkozy.

A proposta deverá passar também no Senado, mas a pressão de alguns sectores da sociedade – principalmente de algumas empresas multinacionais, que ameaçam sair de França se não puderem garantir algum grau de privacidade aos seus utilizadores – foi suficiente para que os seus críticos ainda tenham uma pequena hipótese de cantarem vitória: o Presidente François Hollande já anunciou que vai pedir ao Conselho Constitucional que analise a proposta, uma medida que é ao mesmo tempo inédita num chefe de Estado, segundo a agência AFP, e estranha, já que Hollande presidiu ao conselho de ministros que aprovou o documento.  

Em Julho de 2013, no auge das revelações sobre a NSA norte-americana, o jornal francês Le Monde noticiou que os serviços secretos do país já recolhiam e guardavam "os dados de chamadas telefónicas, mensagens de correio electrónico e actividade nas redes sociais de milhões de cidadãos nacionais e estrangeiros" – a situação foi considerada mais grave do que a existente nos EUA, precisamente porque essa actividade não era legal, algo que a proposta aprovada nesta terça-feira poderá resolver.

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