A Comissão Mista ataca ao amanhecer...

Para pior já basta assim, diz o povo na sua sabedoria

Os traços predominantes dos portugueses são tema para infinitas reflexões e especulações. Somos tristes, somos brandos, somos invejosos. Um recente alvoroço na nossa paisagem político-jurídico veio lembrar-nos que somos, também, indigentes e ingénuos.

Corria o ano de 1975, quando o então primeiro-ministro Vasco Gonçalves aprovou um decreto-lei sobre o tratamento jornalístico que devia ser dado às candidaturas dos diversos partidos nas eleições que se avizinhavam após 48 anos de uma ditadura obscurantista. E determinou que devia ser um tratamento “não discriminatário às diversas candidaturas, em termos de as mesmas serem colocadas em condições de igualdade”. E a Constituição, aprovada meses depois, veio também determinar que as campanhas eleitorais se regiam, entre outros princípios pelo da Igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas.

Este o caldo jurídico-cultural que numa interpretação e aplicação fundamentalista da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e dos tribunais levou a uma situação que já ninguém respeitava ou estava disposto a respeitar.

Como é sabido, vivíamos, em 1975, as primeiras eleições livres, mas depois disso já houve, pelo menos, mais dois ou três actos eleitorais. O panorama da comunicação social também se pode dizer que se alterou, pelo menos, ligeiramente. Mas a lei mantém-se igual e, por exemplo, um canal televisivo privado que queira promover debates eleitorais tem de convidar a participar todos os partidos que se candidatam sob pena de, inexoravelmente, a CNE e os tribunais o multarem, como têm feito, porque a lei é para cumprir.

Face a esta situação aberrante, os órgãos de comunicação social, em recentes eleições, passaram a atitudes igualmente aberrantes – ainda que justificadas – de boicote eleitoral não promovendo debates ou não divulgando actividades das campanhas.

Criado o consenso de que era preciso mudar a lei – até porque os partidos do arco da governação deixaram de poder desfrutar no remanso dos seus lares do exaltante espectáculo das arruadas – foi criada, a certa altura, uma qualquer comissão na Assembleia da República com elementos do PSD/CDS e do PS para estabelecer um quadro legal exequível, respeitando o princípio constitucional da Igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas. Admitindo que era preciso regular alguma coisa, esperava-se uma intervenção minimalista de forma a assegurar a igualdade de tratamento na rádio e televisão pública. Mas não foi assim...

O projecto/documento de trabalho/borrão/ mancha ou, melhor, nódoa que se tornou conhecido publicamente, anunciava ainda uma maior burocratização e intervenção do Estado no domínio da liberdade de expressão e de imprensa. O documento – que teria sido certamente muito útil e apreciado em 1975 – previa mesmo que, para além da CNE e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) que se ocupam destes temas, fosse, ainda criada uma “Comissão Mista” com representantes de ambas as instituições. Há que reconhecer que o nome é bonito, Tem mesmo um toque militar e ninguém teria dúvidas que seria um organismo de elevada qualidade e prestígio. Mas se esta “Comissão Mista” já era um brilhante achado legislativo e político, as suas funções então eram prodigiosas: entre outras, apreciar os planos de cobertura das campanhas eleitorais que os órgãos de comunicação tinham de lhe submeter com a devida antecedência e fiscalizar o seu cumprimento. No fundo, eram uma espécie de “capacetes azuis” eleitorais. Um anexo à nódoa, que seria publicado mais tarde, traria com toda a certeza os uniformes de campanha dos membros da Comissão Mista.

Este projecto/nódoa era tão consciente do grau de intervenção estatal que impunha, que quanto à utilização da internet se sentia na obrigação de dizer que “os cidadãos que não sejam candidatos ou mandatários das candidaturas gozam de plena liberdade de utilização das redes sociais e demais meios de expressão através da internet”! Obrigado, Comissão Mista!

Lamentavelmente, esta nódoa tornou-se pública e a sua inanidade tornou-se imediatamente evidente. A reacção da comunicação social não foi propriamente entusiástica e o próprio presidente da ERC – a quem não se conhece qualquer vocação para mártir – anunciou que se demitiria se tal projecto fosse aprovado. Era evidente que entretanto já tinha sido abandonado.

Há agora quem diga que este documento de trabalho foi fruto da ingenuidade política dos seus autores, outros afirmam que foi da sua indigência, outros ainda detectam no mesmo, grandes perversidades. Pessoalmente, não tenho dúvidas que houve ingenuidade, indigência e inexperiência mas sobretudo parecem-me, projectos e autores, cada vez mais insuportáveis. Tudo muito in...

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