Dança em família

À partida os papéis são estes: Zé Mário Branco como encenador, Manuela de Freitas como escritora, Camané como actor. É a família que se vê no DVD que acompanha o disco

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Camané e Zé Mário Branco: como sempre como dantes, encontram-se para a música

Em 2008, quando Camané editou Sempre de Mim, José Mário Branco dizia ao Ípsilon que ele, Manuela de Freitas e Camané eram “como os amantes”: “A gente junta-se para o que é bom e depois vai embora”.

Sete anos volvidos, há um plano, no documentário de Filipe Ferreira que acompanha a edição especial de Infinito Presente, em que se ouve José Mário Branco a dizer que fora do trabalho nunca se vêem – como sempre como dantes, encontram-se para a música.

Num plano particularmente engraçado, José Mário Branco e Manuela de Freitas observam atentamente (presumivelmente em sua casa) Camané e o seu guitarrista a ensaiar um fado no sofá; ao fundo da sala há um miúdo a jogar computador, como se nada fosse, apenas uma tarde normal com umas visitas.

O que esta cena nos diz é que, sim, eles juntam-se para o que é bom – mas quando se juntam são uma família. Musical, mas uma família. E o que o documentário revela são os códigos que todas as família têm, os lugares que cada um ocupa e como as suas relações evoluem.

À partida os papéis são estes: Zé Mário como encenador, Manuela como escritora, Camané como actor. São constantes as cenas em que Zé Mário chama a atenção para esta ou aquela palavra que tem de ser acentuada, enquanto Camané se opõe e quer outro caminho. E por vezes somos abençoados com o resultado – e vemos o take final, imaculado, nascido dessa luta de forças.

No DVD há uma cena que exemplifica o acima descrito e revela como esta família funciona. Camané conta ao Ípsilon que cantou Triste Sorte como se chegasse a casa e tivesse urgência de cantar aquelas palavras, mas, tendo a namorada a dormir a seu lado, só podia cantar baixinho. Num revelador plano vemos Zé Mário a dizer a Camané exactamente isto – é como se o fadista, depois de o disco feito, tivesse finalmente inscrito em si as orientações de Zé Mário contra as quais batalhou.

A cena é admirável. ZMB faz o seu discurso, Camané retorque: “Isso é muito difícil, meu, eu não consigo tirar alma daí, agora, esse não acordar a namorada é não cantar, praticamente.”

José Mário Branco: “É”.

Camané: “Pois, mas isso...”, e vira costas. E depois vemos um take sobrenatural. Camané não cantou tão baixinho quanto ZMB queria; nenhum ganhou; quem ganhou foi a canção – e nós.

Temos direito a assistir a batalhas épicas – mas respeitosas – entre Camané e Zé Mário. Na conversa com Camané, este dizia-nos: “Quando me distraio, quando me começo a exibir, o Zé Mário não deixa passar. Faço isso quando estou com medo ou inseguro”. A luta entre o instinto de Camané e o cérebro de Zé Mário Branco fica retratada numa cena em que o primeiro reclama: “Eu assim perco a espontaneidade”.

Zé Mário Branco, a fazer de pai: “Se a espontaneidade te dá para a asneira...”

Camané, a fazer de filho: “Não é asneira”.

Zé Mário pede constantemente contenção – enquanto Camané quer estilar e diz que isso é das coisas mais bonitas que o fado tem. “Mas não podes estar sempre a fazer isso”, diz Zé Mário, “senão estás sempre a dizer a mesma coisa”. Noutra cena vemos o oposto: Zé Mário a pedir a Camané para estilar e este a dizer que não, que não faz sentido, que o que ali interessa é a história.

E numa cena semelhante, Zé Mário Branco pergunta a Camané se o fado que vão gravar dá para estilar e Camané, que tem um conhecimento enciclopédico do fado, explica que não. Os papéis, estabelecidos ao início, vão-se, aqui e ali, trocando. Mas cada tema acaba sempre da mesma maneira: quando Manuela reage a um take fazendo um gesto sobre o braço, como quem diz ter pele de galinha, é porque o fado está bom. Zé Mário Branco chama a isto um afinadíssimo aparelho de avaliação estética: “O pelómetro”. Quando os pelos de Manuela arrepiam, o fado está lá.

Um DVD é uma estratégia comercial – mas no caso é também um sinal de onde os três estão hoje. Permitem-nos ver muito: os seus atritos, as birras, os saltinhos de Manuela. Isto, esta intimidade, só é mostrada hoje porque há vinte anos de história entre eles e já estão à vontade nos seus papéis.

Três indivíduos de personalidades vincadas têm a bondade de nos deixar observar a sua relação: a de uma família unida pela admiração mútua, que por mais diferenças que tenha tem um único fito: fazer grande música. Que ninguém se engane: é mesmo admiração o que une este trio. Quantas vezes se juntam três génios numa sala e trabalham não para si mas para o bem comum?

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