E o bebé que não respira...

A angústia de um jovem casal da classe média de Teerão no momento da partida. Quem é que não respira aqui? É melhor não explicitar. Não para prejudicar o suspense. Para não sarar a malaise Melbourne, de Nima Javidt, é exibido quinta-feira na competição internacional do IndieLisboa.

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O casal deste filme está demasiado obcecado em esconder o seu problema em vez de ajudar o bebé
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Já entrámos dentro da classe média iraniana. Continuamos aí instalados.

Em 2011, <i>Uma Separação</i>, de Asghar Farhadi (Óscar do Melhor Filme Estrangeiro), expunha a intimidade de um núcleo familiar: colocava as personagens sob suspeita, elas vigiavam-se e suspeitavam umas das outras. O cinema entrara por ali dentro, o mundo com ele. Era ressentimento social dentro de quatro paredes em Teerão.

Não é que tivesse sido o primeiro filme a fazê-lo, mas a démarche formal estava consciente do cinema como violação. O que carregava <i>Uma Separação</i> com a densidade das cerimónias de iniciação - vale o que vale a "imagem internacional" de uma cinematografia e as estradas a serpentear a céu aberto por paisagens campestres até já aconteceram há muito.

Agora há Melbourne, a primeira longa-metragem de Nima Javidt, exibida quinta-feira, às 21h30 (Culturgest), na competição internacional do IndieLisboa (repete dia 1 de Maio, 18h, Cinema Ideal). Melbourne, cidade australiana, é o horizonte a que aspira um jovem casal de Teerão. Estamos com eles nas suas últimas horas na capital antes de partirem para a viagem. Não estamos em Melbourne, continuamos dentro de uma casa da classe média do Irão - o realizador, nesta entrevista, fala desse movimento para o interior como uma inevitabilidade para os cineastas, tal como é inevitável Melbourne ser comparado com Uma Separação, até porque partilha o mesmo actor principal, Peyman Maadi.

Uma casa exposta. Nas últimas horas no Irão antes de marido e mulher partirem, algo acontece lá dentro. Spoiler alert a seguir? Como quiserem considerar. Mas não é possível manter segredos se se quer falar do filme. Hitchcock mostrou - tem-se falado em Hitchcock a propósito de Melbourne - que o suspense nasce não porque não se sabe mas porque se sabe. Não é o "quem matou?" (neste caso: "quem morreu?") que interessa, mas o que as personagens fazem para esconder essa informação ou o que o espectador faz quando sabe demais - o espectador, aliás, ficará a saber nos minutos iniciais de Melbourne que há um bebé morto na casa.

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Melbourne é a primeira longa-metragem de Nima Javidt

As campainhas das portas começam a tocar, os telemóveis não dão descanso, o mundo lá fora transforma-se em ameaça, ele e ela, jovens, cheios de ambição, eufóricos e nervosos com a partida - será que a culpa os corroía já antes, por abandonarem...? -, fazem tudo para impedir que as suas ambições se desmoronem. Mentem, até começam por suspeitar um do outro.

A vida não vai ser a mesma. Mas há coisas que não mudam: em relação ao cinema iraniano, e imagens de marca à parte, fica sempre a sensação de que há mais do que uma história a ser contada; e que sobre isso os cineastas permanecem difusos, mesmo não cooperantes (pois se não quiseram explicitar no filme, porque o fariam nas entrevistas?). Em Melbourne a angústia que se sedimenta não deve tanto à habilidade do jogo do cineasta/argumentista, mas ao facto de os filme nos falar de uma claustrofobia, de uma culpa, de uma debilidade moral. As duas personagens são uma terceira, a sociedade iraniana? Quem é que não respira, é o bebé ou a sociedade. É melhor não explicitar. Não para prejudicar o suspense. Para não sarar a malaise.

Começa Melbourne com uma personagem que, do exterior, entra na vida das personagens principais. É um movimento do cinema: penetrar a intimidade. Tudo é logo posto nesses termos de intimidade devassada: a rapariga do census, a tal invasora incial; depois as campainhas a tocar e os telemóveis.
Acredito quando se diz que as melhores histórias são aquelas sobre pessoas cujas vidas foram desequilibradas. Em Melbourne há um casal na sua rotina. No entanto, algo acontece que provoca alterações nesse equilíbrio. A partir de então, tudo à volta ameaça-os, incluindo a campainha da porta e a presença dos familiares mais chegados; ou seja, aquilo que nunca os incomodaria numa situação normal. Essa personagem cria logo desconforto. O que aumenta a adrenalina nos espectadores.

Aquela casa fica exposta ao mundo. Deixa de ser um lugar seguro. Um homem não é uma ilha, e o que se passa a seguir é a demonstração disso.
Completamente! Pode ser uma interpretação. Apesar de o individualismo aumentar no mundo contemporâneo, não nos conseguimos desligar do mundo. Um indivíduo tem de enfrentar os outros e enfrentar o julgamento dos outros. Numa situação crítica as pessoas preocupam-se mais com o que os outros podem fazer ou pensar do que em tentar resolver o problema. Parece irracional mas há exemplos de sobra em todas as nossas vidas. O casal deste filme está demasiado obcecado em esconder o seu problema em vez de ajudar o bebé ou testar a possibilidade de o bebé estar ainda vivo.

Foi um episódio concreto que inspirou Melbourne? Qual foi a ideia para o argumento?
Foi há cinco ou seis anos. Estava numa casa de aldeia com amigos. Havia um casal com um bebé entre nós. De manhã, quando todos foram passear fiquei em casa com a criança algum tempo. Havia muito barulho em redor e perguntei-me como é que a criança conseguia dormir naquelas condições barulhentas. Comecei a preocupar-me. Verifiquei se estava a respirar e felizmente estava tudo ok e nada de mau tinha acontecido. No entanto, a inquietação ficou no meu inconsciente e comecei a pensar no que poderia acontecer se... e Melbourne começou aí.

Estando o filme sempre a criar um ambiente específico de um género, com os códigos do suspense, vai para além disso. Por exemplo, a criança morta: a partir de certa altura deixa de ser uma “personagem”, deixa mesmo de ser um ser humano e passa a ser um sinal. De uma malaise, que tem a ver com aquela casa, aquelas vidas, aquele casal — a criança morreu ali, afinal. Há aquele momento em que, no turbilhão de mentiras em que o casal se envolve, um deles transporta a criança ao colo fingindo que está viva. Esse é o momento de não retorno, não é, em que a culpa tomou conta do corpo deles.
É uma bela maneira de ver a coisa. E isso é verdade para todo o filme e não só para uma cena específica. Na minha nota de intenções para o Festival de Veneza mencionei que na primeira vez que vi o filme projectado numa sala de cinema senti que aquele casal não poderia continuar junto depois de uma coisa daquelas. Isso é o resultado da malaise, como disse. É como se eles reconhecessem no outro alguma coisa nova que os impede de enfrentar o outro.

A criança morta tem uma “função”: revelar o que já lá estava, a culpa, uma fraqueza moral...
É verdade. É o lado negro das personagens que só se revela nas situações críticas.

Sobre a culpa: o casal vai-se embora, para a cidade mais perfeita do mundo, como às tantas alguém diz, Melbourne. Podemos ver isso como se eles fossem culpados de abandono, como se representassem uma geração que deixa o país, que aliena as suas responsabilidades, sociais, políticas e familiares? Ou isso é excessivo?
Diria que o tema principal do filme é a responsabilidade. Acho que a responsabilidade diminuiu com a nova geração e isso não tem a ver com um país específico. Não sei porquê. Para muita gente os valores morais talvez tenham sido substituídos pelos valores materiais. Ou talvez não!

Bem, é impossível não pensar noutro filme, Uma Separação, de Asghar Farhadi (2011). Visto daqui – do estrangeiro - dir-se-ia que o cinema iraniano entrou nas casas da classe média. Começámos por ver o campo. Depois as cidades, mas andávamos pelas ruas, e ainda com personagens socialmente em desvantagem. Agora é a classe média urbana e entramos pelas casas dentro. Confirma esse movimento?
Em minha opinião a história não era o forte do nosso cinema no passado. Em vez disso, mostrava paisagens belas e diferentes e população local. Mas havia aí uma lacuna, entre o filme e o seu criador. Imagine o cineasta sentado no seu apartamento moderno na cidade a escrever sobre paisagens desérticas que estavam longe dele. Essa lacuna está hoje quase anulada e os cineastas filmam sobre o que está à volta deles e que realmente conhecem. Por outro lado, a classe média urbana é uma parte importante da nossa sociedade, a ela pertencem a maior parte dos artistas. É por isso que a vida urbana começa a ser corrente no cinema iraniano.

Sobre os pontos comuns entre os dois filmes, não escapa o facto de que ambos utilizam o mesmo actor, Peyman Maadi. Quis trabalhar isso no seu filme?
Não era importante para mim ser igual ou diferente. A prioridade era a qualidade do filme e a sua eficácia na mente das pessoas. Achei que o melhor actor para fazer o papel seria Peyman Maadi e se fizesse Melbourne outra vez voltaria a pedir a Peyman para entrar. É claro que quando se filma uma história sobre uma família da classe média num apartamento de Teerão em que Peyman Maadi interpreta a personagem principal, as semelhanças tornam-se evidentes. Mas há um mundo diferente em Melbourne e a experiência emocional das pessoas é outra.

Em ambos são as personagens masculinas que ficam sob suspeita e são aquelas cujo comportamento é moralmente mais problemático. É por acaso que nos dois filmes a pressão se abata sobre o elemento masculino?
Acontece que o protagonista nos dois filmes é um homem e é por isso que é ele que está sob pressão. Podia ser uma mulher – mas não, na minha história é um homem.

O sucesso internacional de Uma Separação, o Óscar, teve efeitos no cinema iraniano, nos espectadores e até no trabalho de outros cineastas?
O sucesso internacional do cinema iraniano tem sempre efeitos; repercute-se sobretudo nas gerações de cineastas mais jovens. No entanto, eles fazem os filmes à sua maneira. Há muitos artistas jovens e talentosos no Irão. Trabalhei com alguns deles em Melbourne, como Hooman Behmanesh, o director de fotografia, ou Roghayeh Norouzbeigi, que construiu modelos tridimensionais do set que nos permitiu imaginá-lo antes de começarmos a produção.

O casal deste filme parte mas não vai ser o mesmo depois do que aconteceu. Passa o bebé a outra pessoa. Como se quisessem passar a culpa, o desconforto, a malaise. Este filme é um exercício de suspense ou um comentário sobre a responsabilidade e a moral individual e, por extensão, sobre uma sociedade claustrofóbica?
As duas coisas não podem ser separadas. Penso que estão misturadas. E não pensei nisso quando estava a escrever. Pensei em como contar uma história de forma atraente e eficaz.   

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