Para Mia Hansen-Løve o tempo não volta para trás

O título de Éden pode sugerir um qualquer paraíso perdido. Mas a realizadora francesa Mia Hansen-Løve não gosta de nostalgias nem de romantismos gratuitos. O seu quarto filme é um retrato de geração ao som do French Touch dos anos 1990 liderado pelos Daft Punk – e do que ficou quando o sonho acabou

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NUNO FERREIRA SANTOS

Nos idos da década de 1990, quando os Daft Punk conquistavam o mundo com a sua música de dança de travo parisiense e arrastavam atrás de si a popularidade dos Air, dos Cassius, de Étienne de Crécy, dos Snooze, de Mr. Oizo e tantos outros, Sven Hansen-Løve criava com um amigo o colectivo de DJs Cheers, e os seus sets de música garage tornaram-se num dos momentos-chave da noite parisiense.

20 anos depois, foi na sua história que a irmã, Mia Hansen-Løve, se inspirou para a sua quarta (e mais conseguida) longa-metragem, Éden, que acompanha ao longo de 20 anos os altos e baixos de Paul (Félix de Givry), que de frequentador das noites rave clandestinas parisienses se torna em DJ de primeira linha em noites chamadas Cheers, cruzando-se repetidamente com figuras verídicas da noite (parisiense e não só).

É mais um contributo semi-auto-biográfico, em todo o caso pessoal, para a carreira de uma cineasta que se inspirou sempre no que vê à sua frente para criar os seus filmes. Tout est pardonné (2007), a única das suas quatro longas a não ter estreia em Portugal, inspirava-se num tio seu; O Pai das Minhas Filhas (2009) ficcionava sobre o suicídio de Humbert Balsan, produtor-chave do cinema francês que cruzara o percurso da jovem cineasta como produtor; Um Amor de Juventude (2011) partia da sua própria experiência romântica na adolescência.

Essa dimensão autobiográfica, de acompanhamento de uma geração, valeu-lhe também ser escolhida pelo IndieLisboa como Herói Independente da edição 2015 – foi para acompanhar a sua retrospectiva, que incluíu a ante-estreia de Éden, que Mia Hansen-Løve esteve em Lisboa. E foi num intervalo da sua visita, por entre dois aguaceiros de um 25 de Abril cinzento, que a cineasta de 34 anos falou de um cinema marcado indelevelmente pela passagem do tempo e pela consciência de que não é possível recuperar o que se perdeu. O paraíso perdido que o título de Éden sugere pode ter sido perdido, mas não foi forçosamente um paraíso.

Éden é um filme mais expansivo do que os anteriores, um retrato colectivo de uma geração onde os anteriores contavam histórias mais pessoais.
Mas é um filme que continua no cruzamento entre a ficção romanesca e a autobiografia. Tive vontade de fazer um retrato inspirado pelo meu irmão tal como tive vontade de fazer um retrato inspirado por Humbert Balsan, ou sobre a minha própria história... Mas não decidi fazer um filme sobre uma geração. Acontece apenas que o meu irmão esteve no coração da sua geração, no coração da energia e da modernidade ligada à música electrónica em Paris nesses anos. Quando comecei a escrever, tive o sentimento de abrir uma porta e descobrir um território que ninguém tinha explorado em França. Através dele era dos ideais e dos estados de espírito de toda uma geração, do ambiente de toda uma época, que estaria a falar. Isso também me interessou como resposta a Um Amor de Juventude, que também era uma história de entrada na idade adulta, só que numa versão da minha própria adolescência. E isso deu-me vontade imediatamente de ver o que o meu irmão viveu ao mesmo tempo. Eu tinha começado por uma relação com o mundo mais romântica e mais intemporal, ele tinha estado muito mais próximo da modernidade.

Os seus filmes são narrativamente muito clássicos, muito lineares. Essa modernidade de que fala está muito discreta.
Para mim, no fundo, classicismo e modernidade são a mesma coisa. O impressionismo, por exemplo, é algo de simultaneamente clássico e moderno. É a forma de arte que me toca mais: tem uma modernidade que não está na postura, nos sinais, na ostentação. A linearidade de que fala está ligada à minha relação com a passagem do tempo – é ela que estrutura os meus filmes. É algo que se me cola à pele e da qual não me posso separar, do qual não me consigo desfazer; não sou capaz de fazer batota com isso, é inimaginável para mim jogar com o tempo. Não faço flashbacks nem flash-forwards, não posso desconstruir o tempo porque é precisamente a noção da impossibilidade de impedir a sua passagem, a nossa impotência perante ele, que me estimula artisticamente.

Curiosamente, nos seus filmes há sempre um “antes” e um “depois”, uma divisão em blocos temporais. Em O Pai das Minhas Filhas antes e depois da morte de Grégoire, em Um Amor de Juventude antes e depois da partida de Sullivan, aqui antes e depois do zénite de popularidade de Paul...
Sim! Muita gente acha erradamente que os meus filmes são nostálgicos, mas a nostalgia é a ideia de voltar atrás e ter uma relação terna com o passado e não tenho nada essa ideia. Para mim o passado já foi e não se pode voltar atrás. Conto “blocos de memórias” entre os quais não existe nada, e essa opção de me concentrar em alguns momentos, deixar coisas obscurecidas ou esquecidas, é também uma escolha. É como se fosse preciso salvar apenas uma mão-cheia de objectos enquanto o barco está a afundar... O não-dito, o fora de campo, diz tanto como o que está lá dentro. Os momentos que escolho contar são muitas vezes os momentos menos dramáticos. Sou capaz de passar 15 minutos a mostrar um passeio no campo onde não se passa nada, saltar por cima de dez anos em que houve drama e conflitos, e fazer uma elipse para voltar a uma cena do quotidiano que se passa num café. O que me leva a escolher este ou aquele momento tem a ver com impressões, emoções, que têm um carácter muito subjectivo e que não dependem de uma objectividade factual.

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Éden é mais um contributo semi-auto-biográfico de uma cineasta que se inspirou sempre no que vê à sua frente para criar os filmes NUNO FERREIRA SANTOS

É mesmo nesses pequenos momentos do quotidiano que se esconde o que é essencial?
Por vezes é nos pequenos momentos, por vezes nos grandes e por vezes nos conflitos que as coisas se revelam. Tem a ver com a relação de cada um com a memória e o tempo. Não existe uma regra predefinida que diga que é no momento tal. Acredito que cabe a cada um escolher, na relação que tem com a sua própria memória e com a sua própria vida, onde é que estão os seus momentos essenciais. Por vezes as coisas têm menos a ver com conversas do que com imagens, como por exemplo o chapéu que voa no final de Um Amor de Juventude. Quando escrevo, tento apenas fiar-me na minha experiência do mundo. Tento que o ritmo dos filmes, o estilo, a dramaturgia, sejam calcados na minha experiência de vida. Escrever é tentar ver através de mim mesma, ler a minha memória a ver o que sai, o que fica, quais são as emoções ou os objectos do quotidiano ou os encontros que me inspiram e estar à escuta disso. Estar em sintonia com isso. E é muito fácil afundar-se nos clichés se não estivermos com atenção, tem a ver com libertar-se das imagens que vimos no cinema e estarmos próximos de nós próprios.

Fala muito de escrita, e escreve e realiza os seus filmes. Vê-se mais como uma argumentista que realiza ou como uma realizadora que escreve filmes?
Como uma realizadora que escreve filmes. Agarro-me muito à escrita porque é para mim algo de muito frágil e importante. Sou muito sensível às palavras e ao poder das palavras, à sua capacidade de evocação, mas tenho o sentimento que foi só a partir do momento em que decidi fazer filmes que consegui escrever. Escrever só por escrever é para mim muito difícil, há um peso da escrita que lhe dá algo de sagrado. Ao escrever para o cinema, não estou a fazer um objecto literário, mas sim algo que está ao serviço de um filme, e isso foi a chave que desbloqueou a escrita. E por mais que cada vez me sinta mais à vontade a escrever, considero-me muito mais uma cineasta que escreve, penso mais em termos de cinema.

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