Protecção de Dados arrasa lista de agressores sexuais de menores

Ministra da Justiça defende esta quarta-feira na Assembleia da República proposta que entidade responsável pela salvaguarda da privacidade dos cidadãos considera inconstitucional a vários níveis

Foto
Paula Teixeira da Cruz, ministra da Justiça NUNO FERREIRA SANTOS

Viola vários artigos da Constituição e também outras leis, promove a estigmatização e a exclusão social, ameaça os valores da segurança, ordem e tranquilidade públicas. É desta forma que a Comissão Nacional da Protecção de Dados analisa a proposta de criação de uma base de dados de agressores sexuais de menores que a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, defende esta quarta-feira no Parlamento.

O parecer da entidade que tem por missão velar pela privacidade dos cidadãos dificilmente poderia ser mais arrasador. Ao longo de 25 páginas a Comissão da Protecção de Dados explica por que razão as alterações que o Ministério da Justiça quer introduzir na actual lei são de duvidosa eficácia para prevenir os abusos sexuais e não se tornaram obrigatórias – ao contrário do que alega a tutela, que invoca a transposição de uma directiva comunitária e ainda uma convenção internacional sobre a matéria.

A possibilidade de os pais poderem saber junto das autoridades policiais, caso invoquem fundadas suspeitas, se determinado morador da sua área de residência foi ou não condenado por pedofilia tem sido um dos aspectos mais controversos da proposta. Para a comissão, “a transferência da função estadual de prevenção criminal para a população em geral ou para um conjunto de cidadãos em especial, com os correspondentes poderes, traz consigo uma ameaça para os valores da segurança, ordem e tranquilidade pública”, já que a criação de uma “sociedade civil policial” tem, aparentemente, implícita uma “legitimação da acção directa”.

“Fica por saber – a proposta em nenhum momento o concretiza – qual o alcance do ‘fundado receio’ que legitima o acesso por terceiro” à identidade do prevaricador, critica o parecer. Poderá ser um rumor, uma conversa de vizinhos, uma desconfiança pessoal? – interroga a Protecção de Dados, à qual a possibilidade de se aceder a informação tão sensível “com base numa mera suspeita imaginária ou até em razões menos nobres” é de constitucionalidade muito duvidosa.

No entender da comissão, a consulta pública deste registo consubstancia uma sanção acessória encapotada, que se soma às penas por abuso de menores já previstas na lei. Acresce que nada permite concluir que esta solução seja efectivamente eficaz: o parecer cita dois especialistas internacionais que estiveram em Setembro passado numa conferência na Universidade do Porto, segundo os quais os sistemas de registo de condenados por abuso de menores em vigor no Reino Unido e nalguns estados norte-americanos facilitam a tarefa dos polícias e dos técnicos de reinserção, não existindo porém indícios de que possam prevenir a reincidência.

Trata-se, isso sim, de um sistema  “discriminatório, já que promove a estigmatização e a exclusão social”, realça o parecer da Protecção de Dados.

Outro aspecto criticado diz respeito ao período temporal de permanência do condenado na referida lista, superior ao da pena que lhe é aplicada. Quem for sentenciado por mais de dez anos de prisão pode ficar até 20 na lista, por exemplo. Para a comissão, isto viola o princípio legal da proporcionalidade, tendo em conta que quando se fala de crimes contra a vida a limpeza do registo criminal pode acontecer dez anos depois da extinção da pena. Manter activo durante tanto tempo um registo deste tipo “pode revelar-se numa perpetuação que não é compaginável com os ideais de reinserção social, orientadores de qualquer sistema penal moderno, onde se situa o português”. Contrariará assim o dever do Estado de apoiar o condenado na construção da sua vida, sem incorrer na prática de novos crimes.

Por outro lado, a proposta prevê que pessoas condenadas por crimes deste tipo antes de a nova lei entrar em vigor possam também integrar o registo de abusadores de menores. “A inserção, no registo, de condenações anteriores à aprovação desta proposta viola o princípio da legalidade”, escrevem os membros da comissão, explicando que o direito penal estabelece a não retroactividade da lei.

Quanto à necessidade de transpor uma directiva europeia e de cumprir uma convenção internacional, a Protecção de Dados volta a apontar o dedo ao Ministério da Justiça: “Contrariamente ao afirmado na exposição de motivos da proposta, a solução proposta não resulta da directiva a transpor, nem da convenção de Lanzarote, até porque estes instrumentos jurídicos salvaguardam a ordem constitucional e legal de cada país”. A proposta de Paula Teixeira da Cruz “vai muito mais longe do que a directiva em matéria de acesso à informação, sem que haja fundada conclusão de que o tipo de caminho propugnado permite uma efectiva protecção da comunidade”.

Tanto a Associação Sindical de Juízes Portugueses como a procuradora-geral da República também já se manifestaram contra a proposta.

 

 

 

 

Sugerir correcção
Ler 19 comentários