Combate entre cães, o clube de combate dos homens

O Prémio Especial do Júri do último Festival de Veneza chega à competição internacional do Indielisboa: Sivas, de Kaan Mudjeci. Combate entre cães, o clube de combate dos homens. Entrevista ao realizador.

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Sivas recebeu o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza 2014
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Sivas recebeu o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza 2014
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O realizador Kaan Mudjeci Sedat Mehder

Sivas é a estreia na longa-metragem do turco Kaan Mudjeci, de 34 anos. E logo a trabalhar com duas “matérias” imprevisíveis, os animais e as crianças, deixando-se levar (ou criando a ilusão de que é o real que tudo coreografa) pelas estratégias de um jovem combatente, Aslan, na arena social.

Branca de Neve e os Sete Anões está em fundo. Aslan, o miúdo, não conseguiu o papel de príncipe que o faria exibir-se à rapariga da escola. Para compensar a frustração, reabilita um cão ferido e vai à luta. Sivas é nome do cão e nome da aldeia. Aslan toma-o como arma para impressionar (é uma daquelas criaturas obsessivas do cinema, notamos-lhe uma semelhança com o miúdo de Onde Fica a Casa do Meu Amigo, de 1987, angustiante retrato da infância por Abbas Kiarostami.)

Em 2011 Kaan Mudjeci tinha feito um documentário sobre a relação entre cães e os seus donos, Fathers and Sons. Ainda havia alguém que reproduzia uma narrativa benigna entre homem e animal: algo de “inexplicável”, alguém tentava explicar. Esse material serviu de pesquisa para Sivas, a ficção em que o realizador retira da narrativa qualquer idealização: a horizontalidade da paisagem da Anatólia (onde Mudjeci, que estudaria Cinema em Berlim e Nova Iorque, nasceu) é arena de combate. É uma história de homens, é uma história de violência, é a herança que passa de pais para filhos.

Sivas recebeu o Prémio Especial do Júri em Veneza 2014 e chega quarta-feira à competição internacional do IndieLisboa (19h Culturgest; repete-se dia 1, sexta, 22h, Cinema Ideal)

Não só violou uma espécie de regra do espectáculo – “nunca trabalhes com crianças ou animais” – como foi determinado na violação: trabalhou com os dois ao mesmo tempo, com crianças e com cães. Como é que a máquina de cinema lida com criaturas imprevisíveis, como foi essa experiência?
É verdade! Foi logo o que me disseram quando comecei a trabalhar no projecto e foi difícil convencer as pessoas que podia transformar a minha ideia num filme com cães e crianças. Foi uma experiência muito especial, ao mesmo tempo desafiadora e exigente. Temos de prestar atenção, temos de nos interessar, é preciso tempo.
Passei a maior parte do tempo a fazer o casting para ambos [cão e criança]. O cinema deveria sempre confrontar-se com o imprevisível. Ou seja, aceitei este desafio com prazer.

Como encontrou o actor? E como encontrou o cão? Suponho que tenha sido como procurar o “casal” perfeito. Em algumas sequências – quando o cão está ferido, quando Aslan começa a pôr em prática a sua estratégia – Sivas parece documentar em tempo real um encontro, uma primeira vez juntos.
Fiz o casting deles ao mesmo tempo e investi muito nisso. Vi miúdos de diferentes cidades, locais. Dogan [o intérprete de Aslan] vem dessa aldeia, estava familiarizado com a paisagem, com o clima. Escolhi-o para o papel principal no fim do processo, depois de o ver interagir com outras crianças. E, sim, quis criar uma espécie de percurso paralelo entre os dois. Tinha feito um documentário sobre os cães de combate e os seus donos, para o qual tinha feito pesquisa na zona...

Fathers and Sons (2011)... Porquê o interesse por esse milieu dos cães de combate e dos seus donos?
Representa, para mim, as relações de poder da masculinidade. Os “actores” dessa relação de propriedade podem mudar, ou os lugares, mas as relações de poder da masculinidade mantêm-se e com o mesmo nível de crueldade.

O título desse documentário, Fathers and Sons, pode ser lido como descrição das relações entre um homem e o seu cão: o lado afectivo, idealizado, que alguém no final, aliás, diz ser impossível de explicar. Mas Sivas explica, e “pais e filhos” adquire um sentido menos metafórico: é a iniciação à violência, o que passa de... pais para filhos. Foi essa a razão para filmar a ficção?
A ideia da ficção já existia antes do documentário. Tentei perceber se esse tal laço emocional era possível de explicar. O mundo da ficção dá-nos liberdade para retratar a iniciação à violência.

Como é que a paisagem nos diz quem somos? Sente-se que o seu filme – como um outro retrato de uma criança voraz, o P’tit Quinquin de Bruno Dumont quer dizer-nos algo sobre essa relação. Filma-a como uma arena – lugar onde se luta. Nasceu naquela região da Anatólia; o que pode dizer sobre aquela paisagem?
A nossa existência está sempre relacionada com um espaço, que nos define e molda. Aquela paisagem sempre me fascinou, espraiando-se horizontalmente e os humanos ou animais afirmando-se verticalmente. É uma história que se podia passar em qualquer lugar, mas esta paisagem árida, que me é familiar, deu-me a atmosfera e os sentimentos de que eu precisava. Ou então encontrei ali os sentimentos que procurava.

Num Verão organizou em Berlim sessões de cinema ao ar livre, para imigrantes turcos na Alemanha, que assim podiam ver filmes turcos. O título desse evento, Çekirdek, vinha do hábito tradicional de comer sementes enquanto se vê um filme. Como equilibra a nostalgia, o calor e afecto pelos rituais e um ponto de vista crítico sobre alguns desses rituais?
Nesse Verão, os voos para a Turquia estavam tão caros! Mostrámos velhos filmes turcos,, servindo sementes de girassol e chá, coisas de que essas pessoas iam sentir saudades nesse Verão. Era um cinema ao ar livre ilegal. Tentámos compensar a perda com uma atmosfera nostálgica, na verdade. A nostalgia é um sentimento com um certo conteúdo de melancolia. Há uma bela palavra portuguesa para isso: “saudade”. O meu sentido crítico mantém-me alerta e a nostalgia é um intervalo. Não houve um equilíbrio fácil aqui.

Pergunto-lhe isto porque, quando disse, numa entrevista, que preferia um mundo dominado por mulheres, estava a referir-se como contraponto ao que se passa em Sivas: os homens e os seus códigos. Os intérpretes pertencem a esse mundo. Imagino que o que eles interpretam é o que eles são. Como é que esse ponto de vista crítico interfere na sua relação de confiança com eles?
O mundo de Sivas não pertence só àquele mundo. É um pequeno retrato do todo. Esse mundo teria mais justiça e o poder seria regulado de maneira diferente se as mulheres dominassem. Sivas mostra o outro lado da moeda, um mundo dominado pela crueldade masculina. É esse o poder de uma ficção, a liberdade de que falava antes. Há uma história e actores para interpretarem os papéis. Estou feliz por ter criado uma relação de confiança com eles.
Os que participaram estavam felizes. De alguma maneira invadimos as suas vidas a partir do momento em que tivemos a ideia, mas senti-me bem-vindo. Estava a fazer um filme, não uma pesquisa sociológica ou etnográfica. Também não quis mostrar “a vida na aldeia”. Esta aldeia, como a paisagem, foi o local certo para esta história que foi escrita.

O seu protagonista é parecido com o miúdo de Onde Fica a Casa do Meu Amigo, de Abbas Kiarostami (1987), também uma pequena figura à conquista de território. Viu esse filme? A ferocidade desses retratos de infância foram inspiração?
Kiarostami é uma grande inspiração para o cinema pela forma como descreve mundos e cria poesia com imagens. Vi Onde Fica a Casa do Meu Amigo. Mas a inspiração para este retrato de infância foi a minha experiência pessoal.

É que, tal como no filme de Kiarostami, o espectador pode esquecer-se de que a personagem é uma criança. É um guerreiro, um sobrevivente – tenderemos a esquecer que é um miúdo. A sequência em que a mãe lhe dá banho serve para nos alertar: o contraste com a violência em que ele está imerso.
Alguns sentimentos aparecem depois das imagens, mesmo depois da montagem. Aparecem no momento em que se consomem, em que se cria um novo sentido. Estou feliz por o meu filme ser lido assim.

O cão é a última imagem do filme. Há um inescapável sentimento de abandono: afinal, é apenas instrumento para rituais de integração social. Aquela coisa idealizada do “homem e o seu cão” é estilhaçada: Aslan precisa do cão para conquistar um lugar na comunidade e a comunidade espera isso dele.
Continuo a elogiar a sua leitura do filme.

Quando Sivas foi mostrado em Veneza, houve reacções agressivas por causa das cenas de luta entre os cães. Quando se vê Fathers and Sons, documentário, não passará despercebido que corta sempre antes da violência e do sangue. Mostra-os em Sivas porque, imagino, foram “simulados” – bem, pode-se “dirigir” cães até certo ponto... – com sangue falso e tudo. Como filmou?
A técnica ajudou-me neste caso. Usámos sangue falso e pusemos um creme na boca dos cães para que eles não se mordessem ou abocanhassem. Demorámos o triplo do tempo necessário, os cães tinham que descansar. Havia veterinários a tomar conta deles. E houve uma série de truques de câmara: por exemplo, duas câmaras em diferentes perspectivas ajudaram-nos a dar a sensação de uma sequência contínua.

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