Alguma coisa (nova) acontece no cinema brasileiro

A primeira longa-metragem de André Novais Oliveira, esta terça-feira no IndieLisboa, é um filme sem par no Brasil. Conversa com um realizador que em Maio estreia em Cannes a sua nova curta.

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O realizador André Novais Oliveira
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Ela Volta na Quinta
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Ela Volta na Quinta

A simplicidade com que André Novais Oliveira fala de seu cinema contrasta com a extrema sofisticação narrativa de Ela Volta na Quinta, uma obra-prima do actual cinema brasileiro, que está em competição no IndieLisboa (esta terça-feira às 21h45, no Cinema S. Jorge, dia 2 às 22h no Cinema Ideal).

Os primeiros frames desta estreia na longa-metragem podem dar a entender que estamos diante de um documentário: fotografias de um casal através da sua história — namoro, casamento, filhos —, ao som de uma balada romântica. No entanto, embora o próprio realizador e a sua família sejam de facto os protagonistas, nada ali é documental. “Gosto de filmar da forma mais naturalista possível, deixando as personagens falarem espontaneamente, mas vejo [o meu trabalho] como ficção mesmo”, diz André Novais´Oliveira, 30 anos, em conversa com o PÚBLICO por Skype, a partir de São Paulo, onde está a finalizar a sua nova curta-metragem, que se estreia no próximo Festival de Cannes.

Através de conversas aparentemente banais, filmadas em planos longos, nunca invasivos, o filme permite, sem maniqueísmo, que o espectador vá formando a sua ideia sobre as personagens. São os diálogos e a interacção entre os actores, muito mais do que as correspondências com uma suposta “realidade" — pais, filhos, namoradas nos seus ambientes verdadeiros — que dão a Ela Volta na Quinta uma espontaneidade única.

Como se pode filmar a própria família assim? Havia um guião? Aquilo é ensaiado? Perguntas que vão tomando o espectador, ao longo de um filme em que tudo é complexo, com camadas que se desvelam, ambíguas, contraditórias, à semelhança da vida. “Mesmo quando o clima está pesado num relacionamento, mesmo com crise, há momentos bons, e eu queria mostrar isso. Apesar de tudo, eles se amam. Mesmo ele agindo como age, ele a deseja.” A cena em que os pais dançam na sala ao som de Olha, de Roberto Carlos, é uma das mais belas, e exemplo disso.

O rigor formal que se pode identificar neste autor vem sobretudo da busca pelo naturalismo, de cenas que fogem do excessivamente teatral, mantendo o enquadramento da ficção. A mão firme de André Novais Oliveira, evidente já nas suas primeiras curtas, estabelece proximidades não óbvias: boa parte do primeiro diálogo de Ela Volta na Quinta se dá no escuro.

Tudo aponta para dentro, para os desafios de cada um dos membros da família, mas o filme é o contrário de uma egotrip. O realizador evita chamar a atenção para si até numa sequência em que conta à mãe como deixou de comer a feijoada do encerramento de um festival de cinema porque não tinha dinheiro e optou por um cachorro-quente às escondidas: ao filmar-se meio de costas, a falar baixo, de forma tímida, o foco nunca sai dela.

Norberto, o pai, e Maria José, a mãe, parecem nascidos para este ofício. A ideia de os colocar como actores veio naturalmente. “Eu tinha feito uma curta antes, então resolvi experimentar com a minha mãe, e ela mandou bem pra caramba”, resume André, na gíria local. "Meus pais são meio doidos, topam tudo. Foi muito tranquilo dirigi-los, o clima na rodagem era muito bom, meu pai ria o tempo inteiro.” Num divertido e longo plano-sequência do filme, é impressionante a espontaneidade de Norberto a dialogar com um empregado, enquanto conduz o seu carro. André diz que apenas o orientou a “puxar assunto” com o rapaz.

O cenário principal, uma casa modesta em Contagem — periferia da capital mineira, Belo Horizonte, ou BH —, é a mesma em que André cresceu. Os pais nunca se mudaram. “Contagem é até chamada de 'cidade-dormitório'. As pessoas fazem o que têm que fazer em BH.” André morou lá até se mudar com a namorada, Élida, também presente no filme, para um apartamento. O início do namoro é o tema de outra curta, Pouco Mais de Um Mês, a primeira seleccionada para Cannes, em 2013. No mês que vem, André estará lá novamente a apresentar Quintal, o seu segundo filme num intervalo de três anos a integrar a Quinzena dos Realizadores. “Apesar de os meus pais também serem os actores, essa nova curta não tem nada a ver com os meus outros filmes. Tem até realismo fantástico.”

Com o pai André aprendeu a gostar de Roberto Carlos, Jorge Ben, Tim Maia. Já o interesse pelo cinema veio do irmão, alguns anos mais velho, que o levou aos festivais de curtas-metragens de Belo Horizonte. "Contagem não tinha nada, só cinema de shopping. E lá num desses festivais da capital [mineira] vi um panfleto de um curso técnico de um ano que ensinava o básico de tudo, fotografia, direcção, som, e resolvi fazer. Na altura eu tinha acabado o segundo grau [liceu] e fazia um curso de que não estava gostando, de técnico de edificações.” Durante um tempo, André Novais Oliveira usava os três períodos do dia: manhã no curso técnico, tarde no estágio e à noite o curso de cinema. “Depois também trabalhei numa locadora [de vídeo] para segurar um pouco mais o dinheiro, e foi massa [óptimo] porque pude alugar um monte de filmes.”

André vê muito cinema brasileiro. Entre as suas principais referências estão Rogério Sganzerla, marco do chamado "cinema marginal" (com o clássico O Bandido da Luz Vermelha, de 1968), e os contemporâneos Kleber Mendonça Filho (de O Som ao Redor) e Adirley Queirós (de Branco Sai, Preto Fica), já considerado um expoente do cinema negro no Brasil, tão longe das elites brancas como o autor de Ela Volta na Quinta. “É que nem uma música dos Racionais MC”, diz ele, citando o maior grupo de hip hop do país: “Periferia é periferia.”

Uma influência fundamental de Ela Volta na Quinta é Killer of Sheep, de Charles Burnett (IndieLisboa 2008), mito do cinema independente americano da década de 70 que mostra o quotidiano de uma família negra, com diálogos longos, espontâneos, de uma beleza rara. Burnett saiu assim do discurso dominante, tal como André Novais faz agora. A elegância com que filma a periferia diverge da histeria ou condescendência frequentes no cinema brasileiro, quando o tema são negros. “É a diferença de falar de dentro”, diz, com humildade. “Eu queria fazer um filme que falasse de dentro.”

E fá-lo tão de dentro e com tanta propriedade que nos consegue mostrar até o que não vemos e o que não mostra.

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