Ministro do Interior dizia em 24 de Abril que o país estava calmo, lembra Feytor Pinto

Contactava com a imprensa estrangeira, foi enviado de Marcello Caetano a missões que exigiam discrição e síntese de análise. Foi acusado de demasiada sofisticação e falhou na tentativa de descolonizar. Quatro décadas depois, Pedro Feytor Pinto recorda episódios dos últimos tempos do regime.

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Pedro Feytor Pinto PEDRO CUNHA
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Pedro Feytor Pinto no Largo do Carmo em 1999 DANIEL ROCHA

“O regime teve uma morte relativamente doce”. A reflexão é de Pedro Feytor Pinto, director dos serviços de informação e imprensa de Marcello Caetano. “Em Portugal não há revoluções vitoriosas, são os regimes que caem”, afirma o homem que, em 25 de Abril de 1974, acompanhou até ao último momento e se despediu do Presidente do Conselho no Largo do Carmo.

Depois, a chaimite “Bula” levou Caetano ao posto de comando do Movimento das Forças Armadas, na Pontinha. De onde partiu para o exílio no Brasil com escala na Madeira. Escassas horas antes do início do movimento militar, no conforto de uma recepção diplomática, o antigo regime vivia, sem o saber, os seus últimos momentos. O ministro do Interior garantia, mesmo, que o país estava calmo.

“Em 24 de Abril de 1974, houve uma recepção na embaixada da República Federal Alemã de despedida do embaixador Von Holeben”, recorda, ao PÚBLICO, Feytor Pinto. “Estavam lá o César Moreira Baptista [ministro do Interior], o Rui Patrício [titular dos Negócios Estrangeiros] e o Silva Cunha [ministro da Defesa Nacional]”, prossegue.

O colaborador de Marcello reconstruiu para o PÚBLICO um diálogo, em que um conviva, perante os insistentes rumores de mal-estar no seio das Forças Armadas reforçados pelo recente pronunciamento militar das Caldas da Rainha de 16 de Março, faz perguntas ao responsável do Interior.

– Estou preocupado, como está a situação?

Moreira Baptista – Ainda agora estive a falar com o Silva Pais [director-geral da PIDE/DGS, a polícia política] e ele disse-me que se esperam alguns problemas no 1.º de Maio [Dia do Trabalhador], mas nada de especial.

– Só isso?

M.B. – Ele garantiu-me que está tudo calmo, tudo tranquilo, tudo controlado.

Os acontecimentos imediatos não confirmaram a benigna visão do máximo responsável pela segurança do regime nem a previsão da polícia política.

“O regime não tinha informação sobre os militares, tudo funcionava mal, dizia-se que nunca haveria problemas com os Fuzileiros porque lá estava o Pinheiro de Azevedo que, no entanto, na noite de 25 de Abril apareceu na televisão como membro da Junta de Salvação Nacional”, exemplifica. No início do Outono de 1971, o director de informação fora enviado pelo chefe do Governo a uma tournée em África. Marcello Caetano que, em 1969, depois de chegar ao poder tinha visitado a Guiné, Angola e Moçambique, regressara à metrópole com um sobressalto. “Em Angola, encontrou muita gente que lhe sugeria a possibilidade de independências rodesianas, independências de brancos”, recorda Feytor Pinto.

“Feche a boca, abra os olhos e os ouvidos”, foi a instrução telegráfica que o enviado recebeu de São Bento. Assim fez. De volta a Lisboa, o emissário de confiança foi igualmente sintético na sua apreciação. Em Moçambique, o comandante do Centro Operacional de Mueda, o então coronel pára-quedista Armindo Videira, respondera com uma interrogação às suas indagações. “Para quê e até quando?”, questionou o militar. Esta pergunta foi a mensagem transmitida a Lisboa, numa reunião no 1.º de Dezembro de 1971, na moradia de Marcello, no bairro de Alvalade. Já então a apreciação dos agentes no terreno punha em causa os motivos, objectivos e o futuro da guerra colonial. As Forças Armadas estavam divorciadas da causa.

Apoio não operativo
Mas o regime parecia indiferente à situação e era incapaz de interpretar os sinais. “Disse a Marcello Caetano para receber os capitães”, revela Pedro Feytor Pinto; “afinal, ele recebeu os generais.” Foi em 14 de Março de 1974, dois dias antes do pronunciamento das Caldas da Rainha, que o Presidente do Conselho recebeu em audiência as chefias militares. Foi a encenação de uma subordinação e solidariedade para com o regime. “As Forças Armadas não fazem política mas é seu imperioso dever e também da nossa ética cumprir a missão que nos for determinada pelo Governo legalmente constituído”, disse o representante dos Oficiais-Generais presentes.

O que fora programado como um acto de devida vassalagem foi notícia pelas ausências. O chefe e o vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, respectivamente, Costa Gomes e António de Spínola, não compareceram e foram exonerados dos seus cargos. Esta peculiar contagem de espingardas recebeu, nos meios castrenses, a classificação elucidativa de manifestação da “brigada do reumático”. O regime perdeu o braço-de-ferro e caíra no ridículo.

“Marcello Caetano convocou a Assembleia Nacional, como se fosse um regime parlamentar, mas o único deputado que defendeu teses de abertura para África foi Mota Amaral”, lembra o director de informação: “Todos nós, tínhamos a noção de que África não era um problema militar, mas uma questão política.” A comédia da “brigada do reumático” e a sessão da Assembleia revelaram a iminência do fim do marcelismo. Das Forças Armadas, o regime recebia um apoio não operativo. Na Assembleia Nacional, a esperança de abertura política resumia-se a Mota Amaral. Sá Carneiro, Pinto Balsemão e Miller Guerra, os destacados da ala liberal de 1969, tinham desistido.

Terceira via para África
Na política há jogo de espelhos. E o que parece pode, afinal, ser o seu contrário. O regime tapava os buracos da sua ineficácia sobre a questão colonial com o beija-mão de generais convencidos e o apoio mecânico dos ultras no hemiciclo de São Bento. Mas, ao mesmo tempo, procurava saídas. “Três semanas antes do 25 de Abril tive uma reunião, em Paris, com os responsáveis de África do Palácio do Eliseu, com o objectivo de conseguir uma terceira via para a questão de África”, relata Feytor Pinto.

“A ideia era abrir canais de comunicação com o Presidente Léopold Senghor, do Senegal, o rei Hassan II, de Marrocos, e Félix Houphoet-Boigny, primeiro Presidente da Costa do Marfim”, prossegue: “Os franceses disseram-se que iam ajudar nesta terceira via, mas que eu tinha um Governo com pena suspensa.” Uma reflexão dura de ouvir para o emissário governamental. Anteriormente, já se tinham desenvolvido outras iniciativas. “Sugeri que falássemos com os movimentos de libertação sempre através de terceiras vias, com a Joana Simeão e o Miguel Mulupa em Moçambique, tive contactos com o movimento de libertação da Guiné, com o MPLA através de um amigo meu, o Luís Nunes, e com as igrejas protestantes”, recorda.

Era uma actividade frenética. “Sentia que por cada minuto que não aproveitássemos nos aproximávamos mais do fim e iam-se reduzindo as possibilidades”, refere. “Ao mesmo tempo que permitia estes contactos, Marcello Caetano fazia outros com outras pessoas, eram esforços separados que colidiam com o ministro da Defesa Nacional, Joaquim Silva Cunha, que nunca concordava”, analisa o colaborador do Presidente do Conselho.

“Américo Thomaz teve uma influência negativa”, afirma o homem a quem o almirante e Presidente da República retirou a saudação por o considerar nefasto. “Fui acusado de ser demasiado sofisticado, de falar com a imprensa estrangeira que, depois, fazia notícias sobre Portugal”, lembra: “Por três vezes, Marcello Caetano foi ao Palácio de Belém apresentar a sua demissão, que sempre foi recusada, e Américo Thomaz dizia sempre o mesmo, criou o problema, resolva-o.” Foi em 28 de Fevereiro que o Presidente do Conselho apresentou, pela última vez, a demissão e teve a mesma resposta de responsabilização da crise latente. 

O Presidente da República era o empecilho para a Primavera Marcelista, a esperança de abertura do regime suscitada pela chegada de Marcello Caetano à Presidência do Conselho. A não resolução do problema colonial esteve na origem da deterioração da confiança da ala liberal no regime. “A ala liberal, com a excepção de Mota Amaral, já não acreditava na capacidade de realização de Marcello Caetano e Francisco Sá Carneiro sempre duvidara da sua sinceridade, considerava-o um oportunista”, admite Pedro Feytor Pinto. Na oposição, confirmavam-se os vaticínios de imobilismo do regime.

Um plano que falhou
Contudo, houve tentativas de sair do impasse. Identificado o bunker na Presidência da República e nos ultras encabeçados por Franco Nogueira, conhecidos como o “grupo de Cascais” onde a maioria residia. Marcello foi instado a agir. “Sugeri a Marcello Caetano que fosse a Belém pressionar Américo Thomaz para abandonar a Presidência, e ele respondeu que não podia cometer uma ilegalidade”, revela o seu colaborador. “Agora admito que, em 1968, quando chegou ao poder terá aceitado um compromisso para manter o status quo em África”, anota.

Nos planos, estava uma operação, cujo significado ia bem além de uma mera dança de cadeiras: o almirante sairia de Belém, Marcello Caetano assumiria o cargo de Presidente da República. “Baltazar Rebelo de Sousa seria o Presidente do Conselho, eu assumiria a pasta dos Negócios Estrangeiros com o objectivo da descolonização”, revela Pedro Feytor Pinto. “Queríamos no Governo homens como Francisco Pinto Balsemão, João Salgueiro, André Gonçalves Pereira, Rogério Martins, Valentim Xavier Pintado e o grupo de Veiga Simão do Ministério da Educação”, prossegue. “Seria um executivo político numa mistura com tecnocratas e com o apoio dos sectores industriais representados pelo José Manuel de Mello e o Manuel Queiroz Pereira, e à margem da cadeia de obediência da União Nacional [o partido único do regime]”, analisa. O plano falhou.

Na visão do director de informação, apesar do autêntico contra-relógio ao compasso do qual foi ensaiada uma saída para a questão colonial, faltava o essencial: o tempo. “Marcello Caetano sabia que quando chegasse ao poder tinha que mudar, mas o problema é que chegou demasiado tarde, o regime acabou quando Salazar caiu da cadeira e Marcello sabia que era um interregno”, acentua.

Há, ainda, outro motivo que limitava a capacidade de manobra. “O salazarismo não era harmonioso, havia monárquicos, republicanos, católicos, maçons e ultramontanos, que Salazar manobrava”, analisa. “Um desses grupos era o de Marcello, com Baltazar Rebelo de Sousa, Silva Cunha, Gonçalves Mesquitela e José Guilhermo e Melo e Castro, que se reunia no restaurante Choupana, no Estoril”, prossegue. Esta pertença diminuíra a sua capacidade de, enquanto Presidente do Conselho, de gerir os grupos do regime. “Marcello Caetano tinha contactos pessoais com a ala liberal, com Marcelo Rebelo de Sousa, Pinto Balsemão, João Salgueiro, Rogério Martins, Xavier Pintado, e também com outros como Pedro Ramos de Almeida, mas não conseguia manobrar”, sentencia.

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