Tribos de contrabandistas aproveitam vazio de poder para o tráfico de imigrantes

Instabilidade na Líbia deixou terreno livre para a actividade das redes criminosas que se dedicam ao tráfico humano pelo Mediterrâneo. Negócio é alimentado pela pobreza e desespero das populações em fuga da guerra.

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/Antonio Parrinello/Reuters

As “autoridades” alternativas da Líbia responderam esta quinta-feira às iniciativas discutidas pelos parceiros europeus no âmbito do seu renovado combate ao tráfico humano no mar Mediterrâneo com a sua própria contra-declaração de guerra. “Qualquer acção [militar] unilateral da União Europeia será devidamente confrontada”, prometeu o ministro dos Negócios Estrangeiros deste governo ad-hoc, Muhammed el-Ghirani, citado pela Reuters.

A “ameaça” do grupo islamista que domina a capital e reclama o poder na Líbia acrescenta uma nova camada à complexidade do problema com que a União Europeia se confronta para responder à crise humanitária e migratória nas suas costas. Aparentemente, o governo-sombra de Trípoli está disposto a repelir qualquer tipo de intervenção em defesa do seu território – leia-se, dos portos controlados pelas milícias rebeldes que são usados pelas redes de contrabando como ponto de embarque de imigrantes clandestinos para a Europa.

Estas organizações criminosas, outrora informais e dispersas, aproveitaram o caos de segurança e o vazio de poder na Líbia desde a queda do regime autocrático de Muammar Khadafi e “profissionalizaram” as suas operações, estabelecendo-se como “autênticas corporações multinacionais”, segundo descreve ao The Wall Street Journal Tuesday Reitano, especialista da Global Initiative Against Transnational Organized Crime, um instituto sedeado em Genebra. Algumas redes têm origem tribal: eram os antigos contrabandistas do deserto, que trocaram o tráfico de mercadorias pelo de imigrantes. Na zona do Sahel, a tribo Tebu tem rotas que desembarcam em Itália e Malta, e que já são disputadas pelos chefes tuaregues que já tinham negócios de rapto de ocidentais ou colaborações com grupos jihadistas.

Estas redes podem oferecer um leque alargado de serviços aos candidatos a imigrantes ou refugiados – da fraude e falsificação de documentos até ao transporte – e, mais importante do que tudo, conseguem antecipar-se ou iludir as autoridades locais e internacionais. Desengane-se quem pensa que o tráfico no Mediterrâneo está entregue a mestres da pesca ou patrões de costa despreparados e obrigados a diversificar a sua actividade por força da instabilidade na Líbia. “Os contrabandistas são espertos e extremamente bem informados. Imaginem alguém que nunca dorme, que lê os jornais, estuda as leis europeias, vigia todos os movimentos das autoridades, passa 24 horas do dia a estudar a melhor maneira de chegar [ilegalmente] à Europa”, relata à BBC o jornalista Giampaolo Musumeci, autor do livro Confissões de um Traficante de Pessoas.

Os dirigentes do governo rebelde islamista – que organizaram uma versão paralela das instituições do Estado criadas pelo regime sedeado na cidade de Tobruk, que é reconhecido internacionalmente como o Governo legítimo da Líbia – abriram a porta a uma negociação com os aliados europeus. “Temos feito todos os esforços para que a Europa colabore connosco para lidar com este problema da imigração ilegal, mas só nos dizem que não somos um governo reconhecido internacionalmente. Pois bem, eles não podem simplesmente decidir atacar a nossa costa sem vir falar connosco”, afirmou Ghirani, numa entrevista ao jornal Times of Malta. “Quem nos garante que a Europa não desata a matar pescadores e outros inocentes? O que estamos a dizer é que estamos disponíveis para atacar este problema em conjunto”, esclareceu.

No entanto, os rebeldes não disseram ainda que medidas estão dispostos a assumir ou a apoiar para enfrentar as redes de traficantes no seu próprio país. A actividade dos criminosos – os “negreiros” do século XXI, nas palavras do primeiro-ministro de Itália, Matteo Renzi – constitui uma importante fonte de receita para as mílícias (e supõe-se que também para o Governo de Tobruk, pela via da corrupção).

O negócio é alimentado pelo crescente desespero de populações em fuga da pobreza extrema, perseguição política ou do conflito sectário e guerra civil em países como o Mali, Níger, Sudão, Eritreia, Somália, e mais recentemente a Síria. Aliás, o movimento dos refugiados vindos da Síria por causa da guerra civil foi responsável pela inflação dos preços cobrados pelos contrabandistas aos imigrantes (mais pobres) da África subsariana. As viagens que antes se faziam por umas centenas de euros podem agora custar entre mil e sete mil euros.

O aumento da procura que tornou as redes cada vez mais sofisticadas também teve como efeito uma multiplicação do número de contrabandistas e uma crescente concorrência por recursos limitados (principalmente embarcações), com um trágico reflexo na deterioração das condições de segurança em que são feitas as viagens ou na violência que é exercida sobre os imigrantes.

Os relatos dos sobreviventes dos mais recentes naufrágios são estarrecedores no que se refere ao tratamento brutal por parte dos contrabandistas. A espera pelo embarque é feita em condições horríveis, em recintos sobrelotados em propriedades remotas. A intimidação e violência são constantes: um dos homens que viajou no pesqueiro que saiu de Tripoli no sábado passado e naufragou a 100 quilómetros da costa, com mais de 800 pessoas a bordo, disse às autoridades italianas que os traficantes atiraram pessoas pela borda fora por causa do excesso de peso antes da partida, e depois fecharam os imigrantes à chave no porão.

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