Na vida dos Blur, Hong Kong foi uma sorte

Após anos de incerteza em relação a um novo álbum, os Blur lançam na próxima segunda-feira The Magic Whip. Uma prova de notável fôlego criativo de um grupo que, depois de retratar o seu país, partiu em busca de se encontrar no mundo.

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Faz sentido que The Magic Whip tenha nascido no cenário em que nasceu. Após anos em que a amizade que inicialmente os unia foi substituída por uma relação mediada por managers e agentes que lhes diziam quando e onde deviam encontrar-se para fazer música, quatro vidas levadas em separado e ressuscitadas colectivamente de forma intermitente apenas para tocar ao vivo e gravar, pareciam já não saber sequer comunicar directamente. São eles quem o confessa. Não seriam apenas os atalhos tecnológicos a fazer com que já não soubessem de cor os números de telefone dos outros três. Era mesmo falta de uso e uma distância de que mal se tinham dado conta até Graham Coxon começar a parecer cada vez mais uma peça que se perdera da órbita do grupo e ficara à deriva.

Com mais de sete milhões de habitantes e uma das mais elevadas densidades populacionais do mundo – na costa Norte os números ascendem a umas inimagináveis 26 mil pessoas por quilómetro quadrado –, a cidade de Hong Kong parecia o cenário ideal para que os Blur não pudessem, enfim, evitar-se. Mesmo encontrando-se em digressão e tendo voltado a apresentar-se com o quarteto original, a hipótese de poder haver um sucessor para Think Tank era um assunto tratado com pinças. Os concertos podiam ser sempre limitados e mantidos sob controlo, apenas pelo prazer de estarem juntos e com a vantagem de poderem parar quando quisessem. Um single como Under the Westway / The puritan podia matar a fome de novas canções sem ninguém se chatear muito. A ideia de um novo álbum, por mais que acontecesse neste clima pacificado de uma inesperada segunda vida para os Blur, acarretaria sempre uma ideia de compromisso, de um trabalho a desenvolver durante meses a fio.

Foi então que o cancelamento à última hora de um espectáculo no festival japonês Tokyo Rocks, em Maio de 2013, deixou o quarteto subitamente desocupado em Hong Kong. Em vez de regressarem a Inglaterra, foram empurrados uns contra os outros numa terra de pouco espaço, e durante cinco dias não tiveram como escapar ao facto de estarem juntos. Enclausurados no apertado Avon Studio, passaram dez horas por dias a debitar ideias, muitas delas a partir de esboços de canções rascunhados por Damon Albarn em sessões do programa GarageBand e transportados num tablet. “Três de nós têm filhos e seria complicado encontrar esta liberdade em Inglaterra”, confessou Albarn à revista Les Inrockuptibles. “Teria sido também impossível recomeçar assim do zero, num estúdio em desuso. Ali, redescobrimos o gozo de tocarmos canções de dez minutos, as ideias voavam entre nós…”

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Linda Brownlee

Findo esse entusiasmo inicial, no entanto, as sessões foram esquecidas, como se, na verdade, tivesse sido mais importante recuperar a intensidade desse sentimento de banda e de pertença a um colectivo do que criar algo de novo. Cada um seguiu as suas vidas e os seus projectos, o entusiasmo em torno de um possível novo álbum dos Blur arrefeceu e o mais natural era que tudo continuasse como até então – com sorte, um novo single e mais uns concertos, até se cansarem de vez. Acontece que Graham Coxon, ao fim de alguns meses sem afazeres que o consumissem, movido tanto por um impulso criativo quanto por um sentimento de culpa relativo ao período de ruína que conduziu à sua saída do grupo por alturas de Think Tank – para o qual gravou apenas a magnífica guitarra desconsolada do tema final, Battery in your leg – e uma vontade de consumar com acções o seu empenho em estar de novo no grupo, juntou-se ao produtor dos primeiros anos dos Blur, Stephen Street, para tentar inventar um álbum a partir das muitas ideias em bruto registadas em Hong Kong. Fez uso do telefone e ligou para Albarn, sem passar pelo manager, pedindo o seu aval.

A partir daqui, Hong Kong já não era apenas uma memória de que as coisas tinham voltado a ser boas, descomplicadas, e uma certeza íntima de que a química criativa entre os quatro, mas sobretudo entre Albarn e Coxon, não se corroera com o tempo. The Magic Whip era posto em marcha, da única maneira que podia ter acontecido. Em entrevista recente à Mojo, Ben Hillier, principal responsável pela produção de Think Tank, declarava que, mesmo sem ter conhecido a fundo o normal processo de trabalho a quatro, tornou-se-lhe evidente que Coxon era o homem que finalizava os álbuns dos Blur. “A pessoa que iniciava as coisas era o Damon. O mais difícil ao trabalhar com mentes muito criativas como a do Damon é levá-las a terminar alguma coisa. Isso não lhes interessa nada. Não estão interessados na laboração, estão interessados na centelha inicial. O Graham tem muito mais presente o gene da laboração.”

Coxon e Street, portanto, dedicaram-se a uma industriosa tarefa de corte-e-costura, fabricando canções onde havia uma série de ideias sem preocupação de forma. E foram chamando Alex James e Dave Rowntree para regravarem as partes que acharam necessárias. Depois, foi voltar a ligar a Albarn e mostrar-lhe o resultado. “Parte de mim queria não gostar daquilo”, admitiu o vocalista à Mojo. “Isso implicaria que não tinha de trabalhar nada naquelas gravações.” Só que, mesmo parcialmente contrariado, ficou rendido às canções montadas por Coxon. Percebe-se porquê: à excepção de Lonesome street, tema de abertura movido pelo típico registo de nervoso juvenil nas guitarras que caracterizava álbuns como Modern Life Is Rubbish ou Parklife, os Blur voltam a ser capazes de olhar para fora de si mesmos para se descobrirem.

Os lugares
Assim que percebeu que aquelas canções não o deixariam em paz, Damon Albarn apanhou um avião de regresso a Hong Kong a fim de trabalhar nas vocalizações e nas letras, tentando recuperar o momento em que os temas tinham repentinamente ganhado vida. O reflexo dessa temporada é sobretudo evidente nas considerações acerca do sobrepovoamento que contaminam There are too many of us, na difusa reflexão poética sobre a Coreia do Norte em Pyongang ou nas referências locais que proliferam em New world towers e Ghost ship. Mas Hong Kong foi também assumido como mote para o trabalho de desbaste e construção de Coxon. “Para mim, Hong Kong evocava uma forma de ficção científica, e por isso há no disco muitos pequenos ruídos de robôs, de discos voadores”, afirmou Coxon à Les Inrocks.

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Durante anos, os Blur foram quatro vidas separadas e intermitentemente ressuscitadas apenas para tocar e gravar — deixou de ser o caso DR

Retrocedendo na história dos Blur, é fácil perceber, aliás, a importância nevrálgica dos lugares na sua construção musical. A Trilogia Life, como é conhecida a sequência Modern Life Is Rubbish, Parklife e The Great Escape, de cabeça totalmente enfiada num retrato entre o cáustico e o cândido, entre o garrido e o aberrante, entre o cínico e o irónico da classe média britânica – uma espécie de correspondência do universo fotográfico espelhado por Martin Parr no livro Think of England –, foi o motor da primeira fase criativa dos Blur, numa vinculação exagerada a uma identidade inglesa por oposição à deflagração do grunge em território norte-americano. Ao mesmo tempo, perfilava o grupo como seguidor de bandas como Beatles, Kinks e Jam, enquanto Albarn seguia uma regra de escrever na terceira pessoa, como se não fizesse parte da paisagem que empurrava para dentro das canções, numa relação de amor-ódio com a sua realidade próxima. Os Kinks, diz a lenda, foram a única banda que ouviu durante os meses que precederam a gravação de Modern Life…

Finalizada a trilogia, Albarn resolveu dar espaço a Coxon para trazer o seu amor indefectível pelo lo-fi norte-americano, por bandas como os Pavement, os Yo la Tengo ou os Sonic Youth. Tal opção simbolizava então uma tentativa de envolver mais o guitarrista, cansado do caminho de uma pop arreigadamente britânica que embatera com estrondo em Country House – o tema que se tornou o exemplo de uma ideia levada longe de mais. Mas se a cedência a Coxon para a inflexão sonora assinada em Blur era assumida, Albarn começava também a perceber uma outra forma de sobrevivência artística – esgotado o filão de uma música virada para dentro, de construção sobre uma identidade local, o grupo começava a procurar no exterior e na sua assunção do outro uma forma de se redefinir.

Fora de si
Albarn seria fundamental nesse movimento. Já então envolvido na exploração da música africana – tinha editado Mali Music e os Blur haviam lançado o single Music is my radar, em que manifestavam a sua admiração pelo músico nigeriano Tony Allen –, já dividindo o seu tempo com a pop saturada em hip-hop e dub nos Gorillaz, a passagem por Marraquexe para parte das gravações de Think Tank reforçava esse recurso a outras geografias como meio de impedir que a música entrasse num curto-circuito criativo, numa autofagia imparável. Parece uma medida profilática óbvia contra o umbiguismo que se apodera de quase toda pop britânica, como se a sua história se bastasse a si mesma, mas é essa lucidez que continua a permitir aos Blur de Magic Whip não caírem em redundâncias para as quais não haveria a mínima benevolência. Hong Kong não foi, por isso, um acidente – foi uma sorte.

E se Go out, apesar de não repetir de forma óbvia aquilo que já sabíamos dos Blur – o passado fica por conta de Lonesome street e I broadcast, sem que, ainda assim, sejam meras cópias desses tempos –, podia até ser um tema dos Gorillaz, o ponteiro de Magic Whip está sempre a apontar para territórios não cartografados. Da melancolia espacial belíssima comum a New world towers e à enorme canção que é Thought I was a spaceman, acompanhada por baixos viciosamente dub, à guitarra que Coxon diz ter colocado a chorar em My terracotta heart ao adivinhar que Albarn a levaria para uma acentuada tristeza – mas sem adivinhar que escreveria sobre a amizade dos dois – e ao tom marcial de There are too many of us, nada soa a Blur em piloto automático. Muito menos o tom relaxado, soalheiro, jubiloso que toma conta de Ghost ship e Ong ong. Muito menos ainda o rasgo épico à sombra do Grande Líder em Pyongyang ou a guitarra morriconeana acrescida de cordas arábicas sobre as quais se desenrola o final com Mirrorball.

Nada faz menos sentido do que isto: enfiar quatro tipos num cubículo dentro de uma ilha claustrofóbica e sair de lá com as bases para um álbum que é todo um movimento de expansão serena e confiante deste fundamental património pop dos tempos em que calhou vivermos.

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