The Saints: O que é afinal isso do punk?

Os australianos The Saints estiveram na linha da frente do punk com (I'm) stranded mas nunca apreciaram ver-se descritos como tal. Di-lo o vocalista Chris Bailey, pouco antes da estreia da banda em palcos portugueses no Stairway Club, em Cascais.

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“Estamos na estrada, a caminho de Granada." Chris Bailey explica que acabou de sair da carrinha da banda, onde o ruído não era consentâneo com uma entrevista, para falar à beira da estrada com o Ípsilon. Está a dois passos de Almería, deslumbrado com a paisagem natural fora deste mundo daquela zona da Andaluzia, e recorda que ali foram rodados alguns dos clássicos westerns de Sergio Leone. “Parámos numa pequena aldeia no sopé de uma grande montanha e almoçámos num pequeno restaurante, muito rústico. Isto é uma das boas partes do rock’n’roll. É como estar num filme." É?

Não imaginaríamos que uma refeição numa pequena tasca, numa pequena aldeia do Sul de Espanha, fosse incluída por Bailey na lista de itens rock’n’roll. Ele é, afinal, vocalista, compositor e guitarrista dos The Saints, banda que directamente dos antípodas, em Brisbane, Austrália, deu arranque à explosão punk com o hino de ferocidade e alienação intitulado (I’m) stranded – tão marcante que levou Nick Cave a defender que, para a sua geração, os Saints eram inspiradores ao ponto de atingirem naquele final da década de 1970 um estatuto de quase divindade, culpa do rock’n’roll zangado, insatisfeito e acelerado que tocavam e dos concertos incendiários que, não raras vezes, provocavam tumultos com as autoridades de um país à época tremendamente conservador.

É com essa memória na cabeça, antecipando a estreia da banda em Portugal esta sexta-feira (Stairway Club, Cascais, 22h; primeira parte pelos portugueses The Dirty Coal Train e Clockwork Boys), que ouvimos Bailey falar deliciado da calmaria na pequena tasca. É com essa memória que o ouviremos, pouco depois, exclamar que solta sempre uma gargalhada quando chamam aos The Saints “uma banda punk-rock”: “Sou um homem velho e já não consigo identificar-me com isso." Bailey tem 57 anos. Velho não será. De qualquer modo, não seria preciso chegar a velho para dizer que não se identifica com o termo punk-rock. Isto não é de agora. Foi isso, aliás, que fez dos Saints uma banda especial nesse momento em que Sex Pistols, The Clash, Buzzcocks ou The Damned faziam estremecer as placas tectónicas da música popular urbana. “Há muito a dizer sobre o isolamento australiano”, comentará. “Fez com que nunca pertencêssemos a uma cena."

Fundados em Brisbane em 1973 por Chris Bailey, um filho de irlandeses nascido no Quénia e emigrado para a Austrália na infância, pelo guitarrista Ed Kuepper, nascido em Bremen, Alemanha, e pelo baterista e mais tarde teclista Ivor Hay, os The Saints nasceram do encontro de dois músicos com interesses comuns. “Eu e o Ed criámos uma relação baseada na música que partilhávamos. A soul, o blues e também a boa música pop da época em que cresci [os anos 1960]. Continuo a dizer que parte de mim quer ser um americano negro e cantar como a Nina Simone ou o Otis Redding. Mas sou um tipo branco do centro da Europa e não canto como eles." Junte-se a essa discografia partilhada a questão hormonal: “O puro prazer físico que proporciona o rock’n’roll, música sexual que podes dançar, e que, quando és adolescente e tens as hormonas a trabalhar a toda a hora, é muito excitante." E acrescente-se ainda, para perceber como foi punk esta banda que não gostava de ser classificada como tal, o contexto da época: “Vivíamos os anos da crise do petróleo e a música tinha-se tornado simplesmente mais uma extensão corporativa."

Fazer figas
Os The Saints do enfurecido (I’m) Stranded, álbum editado no início de 1977, foram uma reacção a esse estado de coisas. Os The Saints dos grandes Eternally Yours e Prehistoric Sounds, ambos de 1978, gravados quando a banda já se mudara para Londres e os últimos a contarem com o guitarrista fundador Ed Kuepper, foram uma reacção a outro contexto. Com os sons metálicos, à Eddie Phillips dos Creation, e os metais a pontuarem algumas canções de Eternally Yours, com as guitarras acústicas, o piano e os metais jazzy a surgirem, determinantes, sobre a base eléctrica de Prehistoric Sounds, Van Morrison ganhava familiares numa nova geração e os The Saints respondiam àquilo que, diz agora, Chris Bailey, era a “redução do punk a uma fórmula que, basicamente, o tornava inútil”.

Sem Kuepper, Bailey tornou-se o capitão sem contestação. Aproximou-se da folk e de uma pop literata e manteve os Saints como banda de topes com álbuns como Prodigal Son, de 1988. Iniciou em paralelo uma carreira a solo e continuou a ser homem em viagem. Viveu na Suécia, voltou a Londres, passou temporadas na Suécia. Hoje, encontramo-lo em Amesterdão, Holanda. Nos Saints, descobrimo-lo agora completar o círculo. São novamente um trio (acompanham Bailey Barrington Francis e Peter Wilkinson) e regressaram a um rock’n’roll mais imediato, mais directo. No final de 2014, ao lançarem a edição europeia de King Of The Sun (2012), fizeram-no com um extra curioso, uma regravação em trio do seu último álbum, despindo-o dos arranjos de cordas e metais originais. “Perguntaram-nos se queria gravar algumas canções antigas para a edição e eu disse que não, que achava isso foleiro. Depois bebi demasiado gin”, conta com uma gargalhada, “e quando acordei na manhã seguinte achei que seria boa ideia gravar uma versão negra do álbum, mais próxima daquilo a que soamos agora em concerto”.

Mais de 40 anos depois de fundar uma das bandas de culto do punk, Chris Bailey acorda todos os dias impressionado por “manter o entusiasmo passados todos estes anos”. É um homem com uma visão modesta do seu trabalho. “Não é o trabalho mais importante do mundo. Por estes dias tendo a achar que as pessoas que constroem casas, as que cozem o pão, os enfermeiros e os médicos são mais importantes. Mas é verdade que, sem música, o mundo seria muito menos agradável." E, por isso, ele continua a querer contribuir para tornar a vida no planeta mais suportável.

“Sempre que edito um álbum sinto que não é bom o suficiente. Faço figas e espero que o seguinte o seja." Di-lo sem ponta de angústia. Já se habituou a que assim seja. Já sabia há muito. É a história do rock’n’roll, que é também a sua. Em 1978, em Everything’s fine, de Prehistoric Sounds, Chris Bailey cantava com humor sardónico, “When you look at life all you see is a dull reality/ Wait until some clown on stage explains to you life’s mysteries/ Everything’s fine, carry on”. E os Saints continuam.

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