Sentir aqueles que nada têm a esconder

Em retrospectiva integral, o cinema documental do alemão Jan Soldat propõe um olhar singular sobre a intimidade da sexualidade

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É isso que Soldat quer: que os seus filmes levem os espectadores a “travar conhecimento” com os seus protagonistas DR
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Essa abertura ao outro é tanto mais importante quanto os temas escolhidos por Soldat parecem escolhidos a dedo para deixar alguns espectadores francamente desconfortáveis DR
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Parece-me mais importante sentir as pessoas, deixá-las mostrar o que elas querem dizer. Jan Soldat DR
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A sexualidade, encenada em jogos eróticos mais ou menos intensos, é o centro da maioria dos filmes DR

“É o modo mais puro de contar histórias que já vi no cinema” - quem o diz é a programadora Pamela Cohn a propósito dos documentários do jovem cineasta alemão Jan Soldat. Que, na prática, seguem um esquema muito simples: mergulham o espectador, sem apelo nem agravo, em universos muito específicos, e deixam-no ali, a tentar fazer sentido do que se passa.

É isso que Soldat quer: que os seus filmes levem os espectadores a “travar conhecimento” com os seus protagonistas. “Sem os julgar, de modo nem positivo nem negativo. Mantendo uma neutralidade, nem demasiado próxima nem demasiado longínqua.” Como se fosse uma janela para o mundo deles, perguntamos-lhe? De Berlim, por chat escrito (“penso melhor a escrever do que a falar”, explica Soldat, 31 anos), a resposta não é imediata. “Janela parece-me um pouco distante de mais... Os filmes são muito mais uma espécie de relação, uma aprendizagem do outro, um contacto que vai além do puramente observacional”.

Essa abertura ao outro é tanto mais importante quanto os temas escolhidos por Soldat parecem escolhidos a dedo para deixar alguns espectadores francamente desconfortáveis. A sexualidade BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo), encenada em jogos eróticos mais ou menos intensos, é o centro da maioria dos filmes, mostrada com um olhar curioso e genuinamente interessado. Hotel Straussberg e Prison System 4614 exploram-nas no âmbito de um hotel-prisão que propõe viver fantasias sexuais durante curtos períodos de tempo; The Incomplete é o retrato de um contabilista cuja própria identidade se confunde com a sua necessidade de se afirmar como “escravo”; A Weekend in Germany e Law and Order filmam o quotidiano de um casal idoso, entre conversas banais e jogos eróticos.

É por isso que Soldat coloca ênfase na necessidade de compreender sem julgar. “Parece-me mais importante sentir as pessoas, deixá-las mostrar o que elas querem dizer, do que procurar explicar um porquê. E é muito mais importante formar a sua própria opinião enquanto espectador do que seguir a minha.”

A recorrência no seu trabalho da sexualidade BDSM (maioritariamente homossexual) tem a ver com o que Soldat define como a “maior abertura” e honestidade que encontrou nessa “cena”. “Tudo isto pode parecer muito privado e íntimo, mas existem muitos tipos diferentes de intimidade e, para as pessoas que filmo, é muito fácil mostrar esta dimensão. Não têm nada a esconder. Têm vontade de ser filmadas, e têm as suas próprias motivações para se mostrarem assim. Sentem-se fortes nestes momentos, e gosto muito disso, porque tira da equação o desconforto ou a estranheza. Preciso de ser honesto com os meus protagonistas. Quero mostrá-los com todas as suas emoções, e tenho uma responsabilidade de os mostrar sem os julgar nem formar uma opinião.”

É também por isso que este trabalho documental é pensado primordialmente para as salas de cinema, não para ser visto online ou no pequeno écrã. “O cinema é de certo modo um local 'fechado'”, explica Soldat. “A internet ou a televisão são demasiado 'abertos', seria muito fácil qualquer um pegar numa imagem e tirá-la do seu contexto. Ora estes temas são de algum modo demasiado íntimos para esse tipo de tratamento, e não forçosamente devido à sensibilidade adulta; tem mais a ver com a responsabilidade que sinto para com eles enquanto cineasta. Mas o grande écrã pede também um outro estilo de filmagem, e se estivesse a trabalhar para a televisão não faria assim estes filmes”.

Soldat é um excelente exemplo daquilo a que os directores do IndieLisboa, Nuno Sena e Miguel Valverde, chamam de “pensamento estratégico” do festival - “não marcar passo; não nos limitarmos a acompanhar o que se faz, mas tentar também antecipar”. O realizador alemão esteve ao longo dos últimos anos “na liça” para a competição principal de curtas-metragens, e “chegou quase sempre à fase final” antes de ser eliminado pela implacabilidade dos “numerus clausus”. Mas os filmes que Soldat enviou este ano revelavam a afinação do seu olhar singularíssimo e mereciam uma atenção particular – manifestada numa retrospectiva à sombra da nova secção Silvestre.

Rodados entre 2010 e 2014, os doze filmes exibidos, com durações que vão, literalmente, do 0 (In/Out tem apenas um minuto) aos 60 (Prison System 4614, o mais longo, dura uma hora), compõem a primeira retrospectiva de sempre do trabalho documental de Soldat. O cineasta confessa-se “curioso, nervoso, orgulhoso e feliz”. À imagem dos seus protagonistas, que se sentem finalmente “vistos”, “orgulhosos de se verem num écrã de cinema a fazer aquilo de que gostam, sem serem apontados a dedo nem julgados.”


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