O perigo das utopias

Em Regarder les morts (2011), o outro filme em que Jean-Gabriel Périot aborda a tragédia do grupo Baader-Meinhof, o cineasta encontra a pintura de Gerard Richter. E ambos reflectem sobre os dilemas que marcaram a vida e a morte daqueles jovens alemães.

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October 18, 1977, série de 15 telas de Gerhard Richter baseadas em fotografias do Grupo Baader-Meinhof DR

“Penso que não devíamos ter ideologias ou utopias. Não precisamos de crenças, de religião, do Khomeini, do catolicismo, do marxismo: todas as crenças são perigosas e erradas”.

Esta é uma frase de um céptico esclarecido que testemunhou a loucura dos homens quando conduzidos pela força das ideias. Gerard Richter, artista, (1932-) cresceu nas ruínas de Dresden, viu, com 20 anos, as primeiras fotografias dos campos de concentração e viveu a adolescência sob o regime comunista da antiga RDA. A sua biografia é indissociável das tragédias que marcaram a História da Alemanha. E um núcleo significativo da sua obra debate-se com esse vínculo doloroso.

Em 1988, pintou October 18, 1977, série de 15 telas baseadas em fotografias do Grupo Baader-Meinhof. Quase todas alusivas à prisão e à morte de Ulrike Meinhof, Gudrun Ensslin, Andreas Baader, assinalam, na perspectiva de um autor como Hal Foster, alguns dos traços principais da pintura do alemão: a suavidade monótona das cores, a indiferença blasé da tinta, a reconciliação aparente da pintura com a fotografia, a (quase) intangibilidades das imagens turvas, embaciadas. Uma neutralidade que, escreve ainda o ensaísta americano, permitiria às pinturas, mais do que às fotografias, conservar imagens da memória.

São imagens da memória (da morte) do século XX e da Alemanha (então RFA) que o homem e a mulher de “Regarder les morts” (2011), contemplam num museu. Esta curta de Jean-Gabriel Périot, inspirada no conto de Don DeLillo, faz de October 18, 1977 o mote de uma conversa em que abundam as dúvidas, os equívocos, a incompreensão mútua. A mulher é quem mais verbaliza as suas opiniões e emoções. Não consegue deixar de visitar aquele museu para ver aquelas pinturas. O que a impele? Talvez a necessidade de velar as imagens ou de procurar nelas algum tipo de conforto, de cura, de sentido. Afirmará que o perdão não é alheio aos terroristas, que o que fizeram, embora errado, tinha significado. Vê tristeza naquelas figuras, naquelas pinturas, mas não desenvolve pontos de vistas ou certezas. “Não sei”, é a resposta que repetirá ao homem que, nos intervalos das entrevistas de emprego, também visita o museu. Regarder les morts é um filme distinto de Une Jeunesse Allemande. Não inclui imagens documentais, não conta uma história, sustém-se numa ficção indeterminada, ambígua. As personagens podiam ser representações de homens e mulheres deprimidos com a vida sob a tecnocracia capitalista. Titubeantes, sisudos e tristes nada mais lhes resta senão olhar para as pinturas de Richter não para ver, mas apreender uma semelhança.

Jean-Gabriel Périot não revindica a condição de cineasta militante, mas político. Não guia o espectador, deixa que este tome as suas conclusões, depois de se confrontar com contradições, as aporias, os paradoxos que as imagens sugerem. É o que acontece, também, em vários momentos de Une Jeunesse Allemande. Por exemplo, no lirismo dos primeiros anos antes da introdução lenta do radicalismo. Nas imagens dos atentados, com a descrição dos feridos e mortes, a abrir caminho para a evocação dos fantasmas da história pelas autoridades (o álibi para a perseguição e julgamento autoritário dos terroristas). Na figuração frágil (impossível) das massas que contradiz a utopia colectivista que encerra o filme.

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É justo dizer, no entanto, que o documentário é menos elegíaco que a curta-metragem. Há menos tristeza nas suas imagens e, ao mesmo tempo, maior franqueza. Périot lamenta o destino obscuro daqueles revolucionários (deixando que o passado ressoe no presente) mas não nos poupa à loucura das suas frases: “Meter a teoria em prática” ou “Mudar as pessoas e não apenas na cabeça”, podiam ser palavras dos burocratas deste século. De alguma forma, como Richter, também ele reconhece que aqueles que morreram na prisão sucumbiram, no fim, não uma ideologia, de esquerda ou de direita, mas à ideologia (e alguns sobreviventes continuaram a sucumbir, agora do outro lado da barricada).

Esse é também o ensinamento que Richter propõe nas suas pinturas. Sem tomar partido, ou pelo menos rejeitando o dos terroristas, a sua série exprime um profundo pesar pelos acontecimentos de 1977. Não emite juízos, dá a contemplar pinturas que permitirão ao espectador não como recordá-los, mas, simplesmente, rememorá-los. O espectador poderá, então, contra o presente, reflectir sobre os dilemas que marcaram a vida e a morte daqueles jovens alemães.

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