Entregar tratamento do cancro aos privados "deve ser pontual"

Coordenador do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas defende reforço da capacidade do SNS para tratar o cancro e alerta para dificuldades de resposta perante aumento do número de doentes.

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A região de Lisboa e Vale do Tejo vai ter disponíveis 135 novas camas na área dos cuidados continuados Nelson Garrido

O tratamento do cancro em Portugal ainda “não está no vermelho” mas “arriscamo-nos a chegar lá”, admitiu nesta quarta-feira o coordenador do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas. Nuno Miranda considera que os serviços públicos começam a ter dificuldade em responder ao aumento da procura e alerta que, no futuro, “o problema não vai ser de comprimidos, mas essencialmente um problema de recursos humanos”. Para o médico, o país precisa de se preparar para dar resposta a uma população envelhecida e de apostar em trazer de novo para o Serviço Nacional de Saúde muito do que é encaminhado para o sector privado.

Nuno Miranda, que foi ouvido na comissão parlamentar de Saúde na sequência de um requerimento do PSD para avaliar o que tem sido feito no sector, começou por apresentar alguns dados que apontam para o aumento da incidência de novos casos de cancro em Portugal a um ritmo de 3% ao ano, pelo que o país deverá passar dos actuais cerca de 46 mil novos casos anuais para 60 mil casos em 2030. Em 2012 tinham sido feitas 41.705 cirurgias e em 2013 esse número subiu para 44.264, exemplificou o médico. Contudo, salientou que “este aumento não foi suficiente para acomodar as nossas necessidades, porque aumentou o tempo médio de espera em um dia”. Apesar do aumento parecer pequeno, o coordenador lembrou que nesta doença isso significa uma subida de 5%.

Questionado pela deputada social-democrata Carla Rodrigues sobre se o SNS tem capacidade e recursos para responder às necessidades do país na área da oncologia, Nuno Miranda foi peremptório: “Não é para mim uma dúvida. Tem de estar. Tem de se adaptar as condições e aos doentes que tem”, disse, alertando para a dificuldade em reunir recursos humanos, mais do que problemas em acesso a medicamentos. “Quem vai preparar as refeições?”, questionou, reforçando a importância de uma abordagem multidisciplinar ao cancro, mas também social, de que são exemplo os cuidados domiciliários. E alertou que é difícil continuar a aumentar a prestação hospitalar.

“Em ambulatório acho que estamos a chegar muito perto do tecto do que é possível fazer e em termos cirúrgicos também”, acrescentou. Em concreto sobre os medicamentos inovadores, defendeu que na área do cancro há sobretudo medicamentos caros que não trazem nada de muito diferente, mas reconhece que o futuro passa pela “medicina personalizada” e que Portugal terá de procurar resolver o problema do financiamento em conjunto com outros países.

Confrontado ainda com as declarações do anterior presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, Joaquim Abreu de Sousa, que defendeu que o tratamento do cancro está “no vermelho” e em “ruptura”, Nuno Miranda respondeu que o colega apresentou dados do relatório do próprio Programa Nacional para as Doenças Oncológicas e salientou apenas o tom mais “emotivo”. “Ainda não estamos no vermelho mas arriscamo-nos a chegar lá se não nos acautelarmos para o assunto”, contrapôs. O médico corroborou o caso de adiamento de cirurgias no Instituto Português de Oncologia do Porto, tanto por falta de camas como por greves dos profissionais de saúde, mas garantiu que todas foram remarcadas sem efeitos maiores para os doentes.

Para Nuno Miranda é importante reorganizar o Serviço Nacional de Saúde e voltar a trazer para os hospitais públicos as cirurgias e tratamentos de quimioterapia e radioterapia que hoje são entregues aos privados. “Acho que o SNS deve ser auto-suficiente e a dependência do sector privado deve ser pontual. É a mesma coisa que um restaurante estar a externalizar a cozinha”, ilustrou, afirmando ainda que os hospitais públicos têm estado a investir em mais aparelhos para irem neste sentido.

Ainda sobre dados nacionais, Nuno Miranda destacou bons resultados em várias áreas, como o desaparecimento do cancro do colo do útero da lista dos dez cancros mais comuns no país, que ainda é encabeçada pela mama, seguida por próstata, cólon, traqueia, brônquios e pulmões, estômago, recto e bexiga, entre outros. A este propósito, o coordenador insistiu na importância de se prevenirem cancros, alertando que em metade das situações os cancros eram evitáveis e dando como principais exemplos o pulmão e o melanoma (cancro da pele). Nuno Miranda reconheceu que é motivo de preocupação a redução na adesão aos rastreios de base populacional do cancro da mama e cancro do colo do útero e os constrangimentos no cancro colo-rectal. Mas contrapôs que foi um grande avanço o rastreio ao cancro oral que começou em 2014 com a entregue de cheques para biópsia.

As principais preocupações do programa concentram-se, porém, no colón e recto, até pela mortalidade acima da média europeia neste tumor em particular. “O programa de rastreio é neste momento para nós uma prioridade. São mais os problemas logísticos do que os problemas financeiros”, assegurou Nuno Miranda, explicando que a recolha das amostras para procura de sangue oculto nas fezes tem muitos problemas relacionados com a temperatura e transporte. O responsável negou que em causa esteja também a dificuldade de realizar colonoscopias posteriores, avançando que seriam necessárias apenas mais 30 mil por ano, quando o Serviço Nacional de Saúde faz 120 mil.

IPST ouvido sobre doação de sangue por homossexuais
A comissão parlamentar de saúde aprovou, nesta mesma sessão em que ouviu Nuno Miranda, um requerimento do Bloco de Esquerda para uma audição ao presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), Hélder Trindade. Em causa está discriminação de homossexuais e bissexuais nas dádivas de sangue. O pedido feito pela deputada bloquista Helena Pinto recebeu luz-verde com unanimidade, com o objectivo de se perceber o atraso na decisão de viabilizar a doação de sangue por pessoas que tenham relações sexuais com parceiros do mesmo sexo.

O grupo do IPST começou a trabalhar em Dezembro de 2012 e que deveria ter apresentado um relatório até Junho de 2013 – o que não aconteceu. Além disso, o instituto recusa divulgar, por uma “questão ética”, os nomes dos membros do Grupo de Trabalho sobre Comportamentos de Risco com Impacto na Segurança do Sangue e na Gestão de Dadores. Entre outros aspectos, os peritos têm como missão oficial perceber se há fundamento científico para a actual exclusão destas pessoas do grupo de possíveis dadores de sangue. A proibição vigora também noutros vários países por se entender que naquela população há maior prevalência e incidência de VIH/sida, mas há cada vez mais locais a porem fim a este critério.

A maioria PSD/CDS rejeitou, contudo, um outro requerimento dos bloquistas para ouvir o coordenador nacional para a Saúde Mental, Álvaro Carvalho, com o argumento de que já está prevista uma audição no início de Maio nos moldes semelhantes da que aconteceu com o Programa Nacional para as Doenças Oncológicas.

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